Dentre todas as rivalidades marcantes que se criaram entre personagens icônicos do entretenimento (Alien X Predador; Freddy Krueger X Jason; Marvel X DC; etc), uma das que mais costuma me chamar atenção é aquela entre os dois monstros gigantes mais famosos do Cinema: King Kong e Godzilla. Embora dividindo o fato de serem criaturas colossais que deixam um rastro de destruição nas civilizações por onde passam, a dupla de kaijus se difere em função da distância geográfica e cultural que separa seus países de origem: se por um lado o gorilão é uma criação norte-americana que chegou aos cinemas com o objetivo de promover a fantasia e o escapismo, já que os Estados Unidos ainda enfrentavam os efeitos colaterais da Grande Depressão e o público não rejeitaria uma aventura pulp que o fizesse esquecer temporariamente os problemas do mundo real, o lagartão foi concebido no outro lado do planeta a fim de refletir justamente a memória e o horror do Japão após os ataques em Hiroshima e Nagazaki, usando a figura do monstro para lembrar os espectadores dos traumas da realidade que os cercava.
Assim, colocar Kong ao lado de Godzilla é mais do que brincar de comparar seus poderes ou tentar imaginar quem ganharia numa briga; é entender como as características sociais, culturais e históricas por trás de ambos os produziram às suas próprias maneiras, constatando, no processo, como duas nações em cantos opostos do mapa-múndi trazem visões completamente diferentes acerca de monstros gigantes. Não à toa, uma boa forma de perceber o contraste entre Kong e Godzilla é assistir às produções que inverteram os polos de cada um, seja Hollywood em suas (fracas) tentativas de retratar o lagartão em solo americano ou Ishirō Honda trazendo o gorilão para Tóquio no King Kong vs Godzilla que dirigiu em 1962.
Terceiro longa de ambos os personagens (e primeiro de ambas as franquias a ser rodado em widescreen e colorido), King Kong vs Godzilla conta uma história curiosa: frustrado com a baixa audiência dos programas de tevê que patrocina, o Sr. Tako, presidente da Farmacêutica Pacific, sente que sua sorte está prestes a mudar quando descobre que, numa ilha remota e misteriosa, vive um gorila gigantesco chamado pelos nativos ao seu redor de Kong – o que naturalmente chama a atenção do empresário, que vê no macaco um chamariz a ser explorado em comerciais. No entanto, logo quando Kong é transportado para Tóquio, um outro monstro já bem conhecido, Gojira (ou, no Ocidente, Godzilla), volta à ativa e se liberta do iceberg no qual fora congelado no desfecho do filme anterior, Godzilla Ataca Novamente. Assim, em função da proximidade entre ambos, o instinto de Kong e Godzilla os leva a se encontrarem e, claro, trocarem socos enquanto destroem cidades de maquetes; o que deixa o Sr. Tako irritadíssimo, pois teme que o lagartão acabe roubando parte das atenções que Kong sozinho conquistara.
Como já deu para perceber, King Kong vs Godzilla não é um filme que limita sua premissa ao choque de monstros em si, preocupando-se, além disso, em conferir nuances ao universo que circunda os personagens-título – nuances estas que vão desde a forma sensacionalista e comercial com que o mercado enxerga os kaijus (colocando o dinheiro que arrecadariam com eles acima das vidas que eventualmente se perderiam – e se perderam – através de seus ataques) até a maneira com que a população, que deveria se sentir ameaçada pelo encontro dos dois monstros, entrega-se ao hype criado pela mídia a ponto de escolher times e discutir quem vai ganhar o combate. Assim, antes de ser um filme sobre a luta propriamente dita, King Kong vs Godzilla se revela uma brincadeira com os fandoms (que sobe hashtags defendendo um lado ou outro?) décadas antes de Hollywood se dar conta de que estes existiam, abrindo mão do medo que os monstros despertariam em prol de uma irreverência que reconhece e reflete na tela o apelo comercial e popularesco destes enquanto produtos.
Neste sentido, não deixa de ser revelador que, no ano seguinte, o filme tenha estreado nos cinemas dos Estados Unidos em uma versão completamente diferente da original do Japão, substituindo várias cenas com o elenco original por outras com atores norte-americanos e, principalmente, removendo o bom humor que havia no corte japonês a fim de inserir, em seu lugar, uma atmosfera mais séria.
O contraste entre estas duas versões, aliás, acaba refletindo também a diferença entre as abordagens dos Estados Unidos e do Japão acerca de seus monstros gigantes: em Hollywood, de King Kong até o último blockbuster lançado no cinema (passando por Star Wars, Jurassic Park, Avatar, etc), há sempre um interesse básico (e cínico?) em fazer o espectador sentir-se dentro do filme, garantindo a este uma imersão que segue uma lógica similar a de um parque de diversões, e consequentemente dependendo de um realismo visual para possibilitar a aproximação entre o público e a fantasia na tela (não é à toa que os blockbusters norte-americanos parecem sentir sempre a necessidade de serem plasticamente perfeitinhos, como se morressem de medo de criar quaisquer efeitos visuais que pudessem ser considerados “toscos”); ao passo que, nas produções da Toho, o que importa não é o grau de realismo dos monstros, mas o que estes simbolizam de fato (e é por isso que, em vez de se preocupar em retratá-los de forma convincente, as produções japonesas se dão ao direito de criá-los a partir de homens vestindo roupas borrachudas; o que importa, afinal, não é se o kaiju está “convincente”, mas que este existe em cena e ponto final).
Não à toa, este contraste (entre o desespero por realismo dos Estados Unidos e a aceitação da extravagância do Japão) pode ser facilmente observado na própria concepção dos dois personagens em suas respectivas franquias: em Hollywood, Kong costuma ser uma animação (stop-motion ou performance capture; a exceção ficou por conta apenas da refilmagem de 1976 e de sua horrível continuação de 1986, nas quais o gorilão, mesmo voltando ao solo norte-americano, era um homem vestido de macaco), enquanto que Godzilla é, tradicionalmente, um indivíduo fantasiado de kaiju. E é natural, portanto, que, sempre que um personagem “visita” o país do outro, as técnicas adotadas para criá-los também se invertam: quando reapresentado pela Toho, Kong passa a ser um ator vestido de macaco (mesmo que o design de sua máscara tente preservar um pouco do visual do boneco stop-motion criado por Willis O’Brien em 1933), ao passo que Godzilla, quando refeito por Hollywood, ressurge como uma criação digital.
Um pouco mais longo do que precisava (erro que se tornaria comum nas produções da série Godzilla), King Kong vs Godzilla se dá ao luxo de criar referências visuais ao King Kong original (que, àquela altura, já era um filme clássico e antigo o bastante para ser referenciado) que soam mais como pequenas paródias do que como homenagens de fato, resultando num longa que, mesmo que as gerações mais recentes tendam a encarar com distanciamento e preconceito (do tipo “Nossa, olha como isso é tosco”), merece ser revisitado com um pouco mais de consideração.