Luca

Título Original

Luca

Lançamento

18 de junho de 2021

Direção

Enrico Casarosa

Roteiro

Jesse Andrews e Mike Jones

Elenco

As vozes de Jacob Tremblay, Jack Dylan Grazer, Emma Berman, Maya Rudolph, Jim Gaffigan, Saverio Raimondo, Marco Barricelli, Peter Sohn, Lorenzo Crisci, Sandy Martin, Marina Massironi e Sacha Baron Cohen

Duração

96 minutos

Gênero

Nacionalidade

EUA

Produção

Andrea Warren

Distribuidor

Disney

Sinopse

Luca vive aventuras com seu novo melhor amigo, mas a diversão é ameaçada por um segredo: seu amigo é um monstro marinho de outro mundo que fica abaixo da superfície da água.

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Luca | Crítica

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Luca foi o primeiro filme que vi logo após First Cow – o que, para minha total surpresa, acabou se revelando uma decisão mais que apropriada: embora separadas por dezenas de milhões de dólares de orçamento, a mais recente animação da Pixar e o último longa da cineasta Kelly Reichardt dividem, entre si, o fato de contarem histórias simples, que dedicam boa parte de suas narrativas a situações pequenas, mas que revelam, em suas nuances, uma magnitude (temática e emocional) inesperada. E há, claro, a coincidência de serem duas obras extremamente delicadas que giram em torno da amizade entre dois personagens, transformando a relação e a lealdade destes no coração de ambos os projetos.

Longa-metragem de estreia do italiano Enrico Casarosa (seu único crédito anterior como diretor foi no curta La Luna, também da Pixar), Luca se passa entre as décadas de 1950 e 1960 e nos apresenta a uma raça de criaturas marinhas que, em função dos constantes ataques feitos pelos humanos (que as chamam de “monstros”), decidiu se manter escondida no fundo do oceano, evitando que os marinheiros e pescadores da pequena (e fictícia) cidade de Portorosso, no interior da Itália, as capturassem e matassem. É neste contexto que surge Luca, um monstrinho de 13 anos que, ensinado pelos pais a jamais chegar perto da superfície, vê sua sorte mudar quando conhece Alberto, uma outra criatura marinha que logo se torna sua amiga e o convence a desobedecer à família e desbravar aos poucos o mundo dos humanos. Quando saem da água e pisam em Portorosso, Luca e Alberto (e as criaturas marinhas em geral) assumem as aparências de humanos, ficando expostos apenas quando molhados – e é na superfície que eles se aproximam de Giulia, uma menina italiana que sonha em vencer uma competição que a levará a uma escola fora da cidade e que, agora, contará com a ajuda dos dois amigos no torneio.

Uma premissa simples, fácil de acompanhar e cujas lições de moral parecem “batidas” a princípio, de fato. Porém, como já aleguei em várias outras ocasiões, o que importa em uma obra nunca é sua premissa (ou mesmo sua intenção), mas como esta se desenvolve – e Luca é um exemplo fabuloso disso, conferido um sentido novo até mesmo à velha mensagem do “Acredite em si mesmo” ao mostrar como esta ainda pode significar muito na prática, indo além de uma frase de efeito clichê. Assim, o filme é bem-sucedido ao usar os aspectos fantasiosos dos personagens e da fábula que constrói para discutir aquilo que de mais real e humano pode haver em nossos interiores, criando uma narrativa que, inclusive, é eficiente ao permitir que diferentes subtextos e interpretações surjam a partir dos mesmos pontos em comum.

A começar pelo fato de que, ao girar em torno de um personagem que é apresentado a um novo mundo, Luca inevitavelmente encontra a oportunidade de estabelecer um paralelo com… o crescimento; as etapas que nos conduzem da infância à adolescência (sim, o filme pode ser encarado como um legítimo “coming of age”). Desta maneira, o longa surpreende ao criar uma série de momentos que, embora envolvendo a natureza fantasiosa de personagens situados num universo lúdico e irreal, tornam-se facilmente identificáveis e relacionáveis para nós, do mundo real: Luca aprendendo a andar; fazendo suas primeiras amizades; aprendendo a lidar com o valentão da área; voltando tarde para casa sem avisar aonde ia (e, por consequência, levando os pais a acusá-lo de “rebeldia”); etc – e o fato de o universo das criaturas marinhas ser esteticamente menos rico e elaborado que o dos humanos ajuda a reforçar o deslumbramento que o menino vem a ter diante do novo mundo que descobre. Neste sentido, Luca também serve como uma desconstrução bacana do velho estigma de que toda produção da Pixar envolve um protagonista tendo que “voltar para casa”, já que, de certo modo, o que ocorre aqui é justamente o oposto.

Tocante também ao retratar a imaginação fértil dos meninos através de várias sequências nas quais estes têm devaneios e, com isso, vão parar no centro de ilusões visualmente fantásticas, Luca encontra, na amizade entre o personagem-título e Alberto, seu verdadeiro coração (outro ponto em comum com First Cow), saindo-se bem ao estabelecer um como o complemento perfeito para o outro (Alberto motiva Luca a crescer e Luca preenche o vazio provocado pela ausência do pai de Alberto) – e, quando chegamos ao terceiro ato e percebemos como um está disposto a abrir mão de algo precioso para si em função do bem-estar do outro, sentimos que aquilo era apenas o resultado natural da construção de uma fraternidade genuína entre os dois. Outra peça fundamental é Giulia, uma personagem que se mostra marcante não só por seu carisma (acreditem: a personalidade da garotinha é um atrativo à parte), mas também por ser um dos principais elos de ligação entre Luca e o mundo dos humanos, apresentando a ele conceitos que lhe fazem questionar muitas coisas que julgava ser irrefutáveis – e é bacana que o roteiro de Jesse Andrews e Mike Jones resista à tentação de transformá-la em “namoradinha” de Luca, já que o centro emocional do filme está mesmo na amizade entre ele e Alberto.

O que nos traz à outra interpretação que a narrativa propõe e que se mostra não só mais ambiciosa, como também mais corajosa: o fato de as criaturas marinhas serem obrigadas pela sociedade a se esconderem no fundo do oceano e a ocultarem suas aparências naturais a fim de conviver com os humanos sem serem linchadas por estes. Lançado em meados de Junho (mês do Orgulho LGBTQIA+), Luca não é nem um pouco sutil ao estabelecer a perseguição a estas criaturas como uma alegoria escancarada para a homofobia do mundo real, já que, para os caçadores de Portorosso, a simples existência delas já é motivo de ódio e violência. Assim, a jornada de “autoaceitação” vista no filme deixa de ser apenas um mantra clichê e assume um papel ainda maior, refletindo toda uma comunidade que resolve levantar a cabeça e se aceitar como é (aliás, faz sentido que a ambientação de Luca lembre um pouco a de Me Chame pelo Seu Nome, outra obra que girava em torno de um garoto que se “descobria” de certa forma).

E é claro que isso cabe em uma fábula – ainda mais em uma que reflete a época na qual foi produzida; uma época na qual a sociedade presencia uma constante (e indispensável) mudança de mentalidades e costumes. Sim, podemos – e devemos – sempre questionar as reais intenções de uma produção da Disney que se proponha a entrar num assunto como este (afinal, sabemos que o interesse de uma empresa multibilionária e imperialista por diversidade não parte de princípios ou ideologias, mas de vontade de ganhar dinheiro). Ainda assim, é fato que uma das formas mais eficientes de se lutar pela causa LGBTQIA+ é através da normalização da presença destes: quando mais gays, lésbicas, trans, queers, assexuais, não-binários, etc passam a ocupar e aparecer em mais espaços, menos eles são compreendidos (pelos que estão ao seu redor) como uma “minoria” escondida em algum lugar, sendo percebidos como parte integral e, acima de tudo, natural da sociedade como um todo.

Não, Luca não identifica nenhum de seus personagens como gay, não fala sobre sexualidade e nem retrata a amizade entre Luca e Alberto como um romance – e talvez isso faça o esforço de inclusão do filme parecer menor do que é. Porém, é evidente que a alegoria criada pelo longa é esta – e, num mundo conservador e atrasado como o nosso, o fato de estar contida em um produto que será consumido por um público amplo (incluindo crianças) já é um belo passo na direção certa.

Que não paremos por aqui. Sigamos em frente.

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