O universo de Duna é tão extenso, rico em detalhes e carregado de conceitos (as irmãs Bene Gesserit; as especiarias; o veneno gom jabbar; os nomes e particularidades de cada planeta; as disputas de poder entre famílias nobres; o povo fremen; a profecia de um “Escolhido” (identificado como Lisan al Gaib) para a todos salvar; etc) que transportá-lo das mais de 600 páginas escritas por Frank Herbert para o Cinema parecia uma tarefa tão impossível quanto a de Peter Jackson ao adaptar a obra máxima de J.R.R. Tokien, O Senhor dos Anéis, para a linguagem audiovisual. Inclusive, a comparação é tão óbvia que eu havia decidido nem escrever sobre ela ao abrir este texto, já que imagino que a maioria já deva ter ouvido a associação entre os trabalhos de Herbert e Tolkien (e a dificuldade de transformá-los em filmes) pelo menos uma vez na vida. No entanto, me senti obrigado a relembrá-la pela milésima vez depois de conferir esta adaptação dirigida por Denis Villeneuve (Sicario, A Chegada, Blade Runner 2049) e voltar a perceber o tamanho do desafio que foi – e ainda é – filmar uma obra como Duna.
Felizmente, Villeneuve (que também assina o roteiro) e os co-roteiristas Eric Roth e Jon Spaihts conseguiram elaborar uma estrutura suficientemente coesa que, abrangendo os principais elementos e conceitos da trama previamente escrita por Herbert, funciona por si só – independente se você leu ou não o livro. Optando por contar somente a primeira metade da história original (o que se revela uma decisão apropriada, considerando que a grandeza daquela obra praticamente impossibilita que seja repaginada em apenas duas horas e meia), Duna: Parte 1 se passa no longínquo ano de 10.191 e se concentra na família Atreides, que, liderada pelo Duque Leto, é escolhida pelo Imperador Shaddam IV para tomar conta do planeta desértico Arrakis, única fonte de extração daquela que é considerada a “especiaria das especiarias”: a mélange. Enquanto os Atreides planejam sua transição de Caladan para Arrakis, porém, os Harkonnen de Giedi Primo arquiteta um violento golpe para tirar aquela família do poder e recuperar o controle sobre o planeta – num ataque coordenado pelo Barão Harkonnen. O que nenhuma das duas Casas sabe, contudo, é que o filho de Duque Leto, o jovem Paul Atreides, não só vem desenvolvendo os mesmos poderes da mãe, Lady Jessica (pertencente à irmandade das Bene Gesserit, que comandam o Império por trás das cortinas), como também vem tendo visões que talvez indiquem que ele seja Lisan al Gaib, o “Escolhido” para trazer equilíbrio ao universo.
(E se você está achando alguns detalhes excessivamente familiares, é porque foi o trabalho de Frank Herbert que inspirou Star Wars, Blade Runner, Matrix, Game of Thrones, Stargate, Avatar e um milhão de outras obras – não o contrário.)
Diretor que há muito vem se especializando na concepção de atmosferas imersivas, porém sóbrias e herméticas (seja ao retratar a obsessão degradante dos personagens de Os Suspeitos, o niilismo do mundo e dos anti-heróis de Sicario, o misto de encantamento e receio diante da “invasão” alienígena de A Chegada ou o futuro soterrado pelas ações – bélicas e mercadológicas – do Homem em Blade Runner 2049), Denis Villeneuve é um cineasta cujas ambições habituais o tornam uma escolha mais que apropriada para um projeto como Duna: Parte 1, fazendo o universo da obra soar tangível a ponto de podermos sentir o incômodo causado pelo tanto de areia que domina os espaços, o temor representado pela possibilidade de uma aparição súbita de um verme de areia e mesmo o choque despertado pela imensidão dos cenários que ocupam a narrativa. Porém, embora funcione dentro de uma lógica que se assemelha a um “parque de diversões”, o universo de Duna soa também triste e intimidador por frequentemente nos remeter àquilo que de pior podemos oferecer como espécie: a destruição total dos recursos naturais motivada por poder e ganância – e, por mais fascinante que seja ver Arrakis, Caladan ou Giedi Primo, são planetas nos quais jamais gostaríamos de visitar justamente por serem mais compatíveis com o futuro que cavamos para nós mesmos do que gostaríamos de admitir.
Claro que esta visão pessimista sobre a Humanidade (e sobre os ecossistemas explorados por esta) já era descrita nas palavras de Frank Herbert, porém ganha vida aqui graças aos méritos de Villeneuve e, obviamente, da equipe com quem trabalhou – e, neste sentido, tanto o cineasta quanto a designer de produção Patrice Vermette tomam a importante decisão de contrapor a total vastidão dos cenários ao absoluto vazio que os preenche, já que isto ressalta simultaneamente o tamanho do espaço que se tornou inabitável (graças à devastação/demarcação/extração de recursos naturais) e o poder que ficou concentrado nas mãos de algumas poucas pessoas (não à toa, tanto a arenosa Arrakis quanto a asséptica Caladan e a chuvosa e escura Giedi Primo são vistas como ambientes grandiosos, mas vagos às suas próprias maneiras). E, se a paleta monocromática da fotografia de Greig Fraser mostra-se útil para ilustrar o caráter etéreo e impessoal de cada cenário/momento (o que é cabível aqui), a montagem de Joe Walker confere dinamismo à narrativa sem sacrificar suas pausas dramáticas, tornando-a ágil e contemplativa na medida ideal, ao passo que a trilha de Hans Zimmer pontua bem a secura daquele universo mesmo irritando um pouco ao praticamente berrar “Olha como eu sou intimidador!” de vez em quando.
Infelizmente, se por um lado a frieza calculista de Villeneuve cai como uma luva nos momentos que dependem apenas da grandiosidade do mundo, da iconografia e dos espaços de Duna, por outro acaba se transformando em problema sempre que o filme tenta se concentrar nos aspectos mais minimalistas e intimistas da trama, já que a rigidez com que o diretor planeja estas cenas faz com que boa parte do drama contido nelas soe mecânico, calculado demais. Em outras palavras: se a obra funciona sempre que sua escala é enxergada de longe, ela frequentemente tropeça quando observada mais de perto – e é por conta disso que alguns momentos de sacrifícios, revelações e traições bombásticas acabam soando bem menos impactantes do que pretendiam (e deveriam), não sendo à toa, portanto, que uma das cenas mais esperadas do filme (aquela na qual Paul é obrigado a colocar sua mão dentro de uma caixa e suportar a dor provocada nela) desaponte justamente por não conseguir replicar a angústia sentida no texto de Herbert (e que até a mediana adaptação dirigida por David Lynch em 1984 soube ilustrar de forma visualmente inspirada).
Mas não é só: se a apresentação do universo de Duna é impecável, seu desenvolvimento acaba não se mostrando tão eficaz, já que a necessidade de condensar mais de 300 páginas de leitura em duas horas e meia de filme torna praticamente inevitável a exclusão (ou, no mínimo, a simplificação) de temas e conceitos importantes para a narrativa – e, se elogiei a capacidade do roteiro de manter os elementos mais relevantes da trama criada por Herbert o bastante para estabelecer uma lógica coesa, me sinto obrigado também a reconhecer que boa parte das intrigas políticas e discussões ecológicas da obra original terminaram superficiais ao serem adaptadas, como se o longa não as desenvolvesse por completo (ora por falta de tempo, ora por falta de interesse). Como se não bastasse, os recursos encontrados pelo roteiro para explicar os conceitos básicos daquele universo se mostram expositivos demais (embora menos ridículos do que na versão de Lynch, que mais parecia um resumão do material de Herbert): sim, o didatismo acaba sendo necessário para situar o espectador médio e há momentos nos quais o filme consegue executá-lo de forma mais natural (quando uma máquina resume a Paul, que nada sabia sobre Arrakis, toda a História do planeta, por exemplo), mas há várias outras ocasiões nas quais vemos um personagem simplesmente dizer a outro uma informação que este já sabia – um jeito preguiçoso de verbalizar (leia-se: mastigar) tudo para o público.
Dito isso, Duna encontra em seu casting sua maior força, conseguindo a proeza de reunir um panteão de atores não só talentosos, mas que soam como escolhas perfeitas para os papeis que ocupam – e não é à toa que não consigo mais imaginar nenhum outro nome no lugar de qualquer um dos rostos que apareceram aqui. Encarnando um personagem que basicamente segue o arquétipo do Herói clássico mapeado por Joseph Campbell, começando como um indivíduo comum que aos poucos embarca numa missão que o faz perceber ser responsável por trazer paz, salvação ou “equilíbrio” ao mundo ao seu redor (pensem em Neo, Luke Skywalker, Bilbo e Frodo Bolseiro, Harry Potter, etc), Timothée Chalamet é hábil ao encarnar não só a dificuldade de Paul Atreides em assimilar um fardo aparentemente grande demais para ele, mas também a frieza do garoto por não se reconhecer como parte daquele mundo e daquelas intrigas familiares/políticas (e, sempre que a frieza do protagonista soa como inexpressividade de Chalamet, este surpreende ao injetar explosões pontuais de alegria, raiva o preocupação no papel). Da mesma forma, Stellan Skarsgård encontra o equilíbrio ideal entre o hostil e o patético ao compor o Barão Harkonnen, ao passo que Oscar Isaac se revela uma escolha perfeita para o papel do Duque Leto Atreides apenas por conseguir sugerir simultaneamente determinação (através de sua expressão rígida) e afeto (através de sua voz suave).
No entanto, acredito que a performance mais marcante seja a de Rebecca Ferguson, que transforma a Lady Jessica Atreides num dos centros emocionais mais fortes de Duna ao retratar tanto a impassividade de uma Bene Gesserit (que, como tal, é obrigada a limitar suas emoções) quanto a incontrolável dor que sente pela missão arriscada incumbida a Paul. Para completar, se Dave Bautista consegue retratar as dúvidas e incertezas de Glossu Rabban em pouquíssimo tempo de tela, Jason Momoa estabelece Duncan Idaho como uma âncora de simpatia e carisma em um mundo carente de ambas, sendo uma pena, contudo, que Josh Brolin não tenha a mesma sorte, já que o filme resume seu Gurney Halleck a um brutamontes de cara fechada e longe das nuances que o humanizavam no livro. Já Javier Bardem e, principalmente, Zendaya pouco têm a fazer a não ser… surgir em cena, já que seus personagens obviamente desempenharão funções muito mais claras na continuação.
Embora conte com sua parcela óbvia de problemas, Duna: Parte 1 é, ao seu próprio modo, uma experiência que funciona tanto como filme autônomo quanto como adaptação de uma obra que, até então, parecia impossível de ser transportada para outra linguagem – e só o fato de provar que o universo e a narrativa criadas por Frank Herbert são capazes de existir no Cinema já constitui um meio milagre.
Resta torcer para que a Parte 2 termine de realizá-lo por inteiro.
Gravei também um vídeo sobre o filme: