Dick Cheney é certamente um dos nomes mais controversos que circularam na política norte-americana nos últimos vinte anos: associado ao Partido Republicano e eleito vice-presidente de George W. Bush, o sujeito basicamente se aproveitou da estupidez de seu governante, tomou parte do poder para si, inventou mentiras que associaram Saddam Hussein ao grupo terrorista Al-Qaeda e ajudou a plantar ideias que eventualmente levaram os Estados Unidos a invadirem o Iraque, usando a tragédia de 11 de Setembro como um pretexto oportunista para corresponder aos seus próprios interesses (o que, vale apontar, não faz de Bush um personagem menos culpado, irresponsável ou imoral nessa história). Em outras palavras: se a reputação daquele país foi manchada nos anos 2000, Cheney foi um dos que construíram essa má fama.
E é isso que Vice sabe retratar de maneira correta e dinâmica, capturando o interesse do espectador por algo que ainda faz parte da História recente e embalando esta recapitulação com boas interpretações e uma abordagem eficiente tanto em visual quanto em ritmo. O problema é que, até chegar neste momento, o diretor Adam McKay parece forçado a se concentrar em algo que não é de seu interesse (a carreira de Cheney pré-governo Bush), o que acaba comprometendo o primeiro ato do longa.
Resumindo em meia hora os mais de trinta anos que Cheney levou para começar sua carreira política, se casar e formar uma família, trabalhar como Chefe de Gabinete da Casa Branca e mais tarde se tornar Secretário de Defesa, o ato inicial de Vice é escrito e dirigido por um Adam McKay que nem de longe lembra aquele que ganhou o Oscar pelo excelente roteiro de A Grande Aposta, já que, desta vez, o resultado é sobrecarregado da mais pura exposição – e o mais decepcionante é que esta é feita de maneira pobre e nada imaginativa: há um narrador que ocasionalmente interage com a trama e que passa o tempo todo explicando para o espectador cada situação e/ou personagem que surge na narrativa, sem nenhum traço de sutileza ou compromisso com a velha máxima do “mostre, não conte”. Para piorar, até mesmo o estilo frenético e surtado com que McKay estabelece o ritmo e o visual de suas obras encontra-se diluído aqui: sim, de vez em quando há uma piadinha construída com cuidado através da montagem (como aquele “falso final feliz” que… enfim, vocês o reconhecerão), mas na maior parte do tempo a má vontade do cineasta acaba contaminando o andamento de Vice, que soa menos como filme e mais como uma aula de História dada por um professor de saco cheio.
A sorte, no entanto, é que chega uma hora em que McKay finalmente começa a se interessar pelo que ele próprio está dirigindo/roteirizando: quando Dick Cheney é eleito para o cargo que dá título ao filme (o de vice-presidente dos Estados Unidos), o filme ganha o fôlego que lhe faltava até então – não é à toa que, a partir do segundo ato, o ritmo de Vice melhora consideravelmente, pois McKay encontra recursos mais criativos para ilustrar certas situações (um bom exemplo disso é a sequência em que cada membro da Administração Bush tem suas funções esclarecidas através de um jogo de mesa), o narrador passa a interagir de maneira surpreendentemente peculiar com a trama (chegando a desempenhar um papel importante na vida do próprio Cheney) e a história torna-se mais envolvente (talvez se beneficiando da familiaridade que o espectador tem em relação a eventos ainda tão recentes na História do mundo). Assim, cada uma das muitas intrigas, mentiras e desonestidades que culminaram em coisas como a “Guerra ao Terror” e o “Ato Patriótico” é estabelecida de modo cauteloso, mas também ágil e dinâmico – em contrapartida, a transição da Era Bush para o governo Barack Obama é conduzida de forma apressada demais, o que é meio frustrante.
Obviamente favorecido pela ótima maquiagem que encobre seu rosto (algo que, confesso, me lembrou o que fizeram com Gary Oldman em O Destino de uma Nação), Christian Bale ainda assim realiza um trabalho que se destaca por conta própria: empregando um tom de voz rouco e monocórdio que ilustra apropriadamente o cansaço de Cheney (e sua impaciência diante de Bush é exposta de forma sutil, mas hilária), o ator mostra-se hábil ao transmitir a frieza do protagonista através de seu olhar rigoroso e ameaçador, estabelecendo o vice-presidente como uma figura pouco comprometida com a moral e que põe seus interesses em primeiro lugar. Além disso, Bale continua a exibir sua entrega habitual aos papeis que lhe são designados (sua mudança física é, portanto, impressionante), ao passo que Amy Adams transforma Lynne Cheney em uma persona que tenta ancorar seu marido no mundo real, mas que aos poucos percebe que isto não será possível. Por outro lado, se o sempre carismático Sam Rockwell se sai admiravelmente bem ao retratar George W. Bush como aquilo que ele é – um imbecil completo –, Steve Carell pouco tem a fazer ao interpretar o secretário Donald Rumsfeld, ganhando menos destaque do que merecia e limitando-se ao que já nos acostumamos a esperar do ator.
Trazendo como desfecho uma sequência onde certas “verdades” são jogadas diretamente na cara do público, sem nenhum tipo de pudor ou falso moralismo, Vice ainda conta com uma cena pós-créditos simplesmente impecável, já que o senso de humor que Adam McKay costuma exibir em comédias como O Âncora acaba sendo utilizado para refletir parte da realidade de hoje nos Estados Unidos. Por um lado, é uma pena que o primeiro ato acabe enfraquecendo tanto o resultado final; por outro, é possível dizer que o segundo e o terceiro chegam perto de compensar os problemas que vieram anteriormente.
E como não gostar de um filme com aquela ponta de Alfred Molina?