Todo mundo sabe que o que tornou o Homem-Aranha tão popular foi o fato de ele ser o mais humano dos super-heróis. Ele pode até disparar teias, escalar paredes e lutar contra supervilões, mas o que importa mesmo é que Peter Parker é essencialmente um adolescente que enfrenta dilemas muito comuns desta fase da vida – e, se ele passa a fazer piadinhas ao vestir a máscara, é porque: 1) se empolga ao usar seus superpoderes; 2) enxerga no bom humor uma forma de despistar o medo das situações perigosas que encara; e 3) vê nisso uma tática para estimular ainda mais a ira de seus adversários. Assim, o Homem-Aranha é uma extensão de Peter Parker, não uma segunda personalidade que vive independente da primeira – algo que a versão de Andrew Garfield falhou em perceber, preocupando-se mais com o humor do Aranha do que com o aspecto humano de Parker. E é um alívio, portanto, que este De Volta ao Lar consiga reunir boa parte dos elementos que tornaram o herói tão querido, apagando de vez a má impressão deixada por seus últimos três filmes.
Sem se prender à necessidade de recontar mais uma vez a origem do personagem (o que é bom), o roteiro escrito por Jonathan Goldstein, John Francis Daley, Christopher Ford, Chris McKenna, Erik Sommers e pelo próprio Jon Watts (tantos nomes numa única função costuma ser um problema) se passa logo após os eventos de Guerra Civil – que, por sua vez, introduziu a mais recente encarnação do Homem-Aranha nas telonas. A partir daí, vemos o herói atuando na região suburbana de Nova York e implorando para que Tony Stark reconheça sua maturidade para convocá-lo para os Vingadores (ou seja: para o grupo dos adultos). Enquanto isso, um grupo de ladrões liderados por Adrian Toomes pretende explorar os resquícios da destruição causada pelos alienígenas que atacaram a Terra em Os Vingadores, levando Toomes a aproveitar da pouca tecnologia extraterrestre que encontrou para criar uma armadura e se transformar no vilão Abutre.
Hábil ao retratar o Homem-Aranha como um herói acostumado a resolver apenas os problemas da região do Queens, fazendo jus ao título de “Amigão da Vizinhança” ao prender ladrões de bicicleta e ao interagir com cidadãos locais, o diretor Jon Watts acerta ao ambientar boa parte da história numa escola e ao mostrar detalhadamente o cotidiano de Peter no ensino médio, desde as provocações feitas pelo valentão Flash Thompson até as conversas descontraídas com o amigo Ned. Assim, o protagonista deste filme convence, de fato, como um adolescente em fase de autodescoberta: mais do que um herói capaz de escalar paredes e disparar teias, o Peter Parker visto aqui é um moleque que, como tal, passa por situações típicas desta fase da vida (se declarar para a garota dos seus sonhos; arranjar um par para ir a um baile; participar de excursões escolares; levar um puxão de orelha da diretoria; chegar em casa dentro de um determinado horário; etc). A diferença, porém, é que Parker precisa balancear as atividades comuns de seu dia a dia com as ações heroicas que protagoniza – e chegou um momento em que, confesso, eu torcia para que ele abrisse mão de combater o crime para que pudesse curtir ao menos uma noite com seus colegas.
Claro que, para funcionar, o protagonista precisava de um intérprete à altura – e, felizmente, esta exigência é devidamente atendida pelo jovem Tom Holland, que, correspondendo às altas expectativas que se formaram após Guerra Civil, exibe um carisma instrumental para conquistar a simpatia do público, mostrando-se inesperadamente eficaz ao ilustrar o pavor de Peter em uma sequência ambientada num carro (vocês a reconhecerão). Assim, as emoções ilustradas por Holland soam como as que um rapaz da sua idade realmente teria ao mergulhar em uma aventura como esta, desde o entusiasmo ao explorar seus superpoderes até o pânico que exibe num momento-chave da narrativa – o fato de Holland ser mais jovem (ao contrário dos mais velhos Tobey Maguire e Andrew Garfield), claro, também ajuda.
Já Jacob Batalon compõe Ned (o melhor amigo de Peter) como um garoto genuinamente encantado pelos poderes de seu parceiro, empolgando-se ao ser um dos poucos que conhecem o Homem-Aranha, ao passo que Robert Downey Jr. ganha a oportunidade de conferir uma nova dimensão a Tony Stark, adicionando a este uma aura paternal e protetora que reflete a relação que ele nunca teve com seu próprio pai. No entanto, as únicas ressalvas ficam por conta de Marisa Tomei e Zendaya: a primeira encarna a rejuvenescida tia May como uma mulher meiga, mas que nunca transmite aqueles valores basilares que iluminam o caminho de Peter Parker; e a segunda só justifica sua presença nos minutos finais da projeção, deixando a promessa de que será muito mais importante no futuro.
Em compensação, o trabalho de Michael Keaton (que já viveu “heróis animalescos” em Birdman e, claro, no Batman de Tim Burton) ao viver o Abutre não poderia ser melhor: complexo e construído a partir de motivações perfeitamente compreensíveis, Adrian Toomes surge como um sujeito comum, que não deseja matar ninguém nem cometer crimes por livre e espontânea vontade, assumindo o posto de antagonista após amargar uma imensa frustração e se indignar com o hábito que os “poderosos” têm de criar uma bagunça para que os desfavorecidos façam a limpeza (e Keaton soa ameaçador ao mesmo tempo em que conquista a simpatia do público, o que é admirável). Mais significativo, porém, é o fato de Toomes constantemente surgir no centro de situações presentes na vida de qualquer pessoa, chegando ao ponto de ameaçar o Homem-Aranha em dado momento, mas não sem antes agradecer por uma boa ação que ele tenha feito.
Trazendo um ar de novidade graças à sua inserção no cada vez maior Universo Marvel (e, ao contrário do que acontecia em outros longas da empresa, as referências feitas aqui não soam deslocadas nem fazem o filme parecer um trailer de duas horas para próximos projetos), De Volta ao Lar é inteligente ao apostar em uma série de adaptações que talvez despertem a ira de alguns fãs puristas, mas que funcionam dentro da lógica que o próprio filme propõe – e, se o uniforme high tech do herói serve como uma novidade bacana, a nova versão de Flash Thompson se afasta do valentão estereotipado que havia nos quadrinhos sem trair a essência hostil do sujeito. Por outro lado, algumas mudanças soam tolas e sem propósito (por que trazer uma menina idêntica Gwen Stacy em cena quando ela obviamente não é Gwen Stacy, por exemplo?).
Mas não só: mesmo fazendo jus ao espírito irreverente e bem humorado que sempre caracterizou o Homem-Aranha nas HQs (a cena que traz o herói tentando soar ameaçador ao interrogar um criminoso é hilária, ao passo que a montagem que ilustra seu esforço para vencer o tédio ao ver-se preso num galpão revela uma casualidade notável por parte do personagem), Watts não se sai tão bem ao dirigir as sequências de ação, tornando-as burocráticas, pouco inspiradas e – o pior – confusas em sua versão em 3D. Para completar, o filme também abusa de momentos que exigem demais da suspensão da descrença do espectador, sendo particularmente impossível crer que ninguém tenha se ferido num incidente envolvendo uma barca partida no meio ou que um avião possa cair e se arrastar pela praia de Coney Island sem matar uma pessoa sequer.
Geralmente bem-sucedido em suas frequentes tentativas de humor (a cena pós-créditos é provavelmente a mais divertida de todas que a Marvel já produziu), De Volta ao Lar é uma obra que faz jus aos mais de 50 anos de fascínio que o personagem despertou – e vem despertando – dentro e fora das páginas de quadrinhos.