A imagem do Museu Nacional em chamas é um retrato muito preciso do que é o Brasil contemporâneo: um país que não se importa em preservar a própria História. Em vez de tratar sua memória com o cuidado necessário (afinal, é ela quem nos faz olhar para o futuro com mais experiência), o país decidiu largá-la para ser destruída. E não adianta: um país que não encara o passado é um país fadado a repetir seus erros – e, se agora o Brasil está flertando cada vez mais com os horrores de algumas décadas atrás, é porque estes não foram lembrados com a gravidade que deveriam. E por que estou dizendo isso? Porque Deslembro é um filme sobre isso.
Afinal, o tema em si é de extrema importância pessoal para a diretora/roteirista Flávia Castro, tanto que um de seus projetos anteriores, o documentário Diário de uma Busca, girava em torno justamente de seu pai, que desapareceu na época da ditadura militar. (Pausa para um parênteses: se você ficou incomodado ao ler a palavra “ditadura” aqui… bem, não sei nem o que te dizer. Apenas sei que o simples fato de alguém contestar o que aconteceu entre 1964 e 1985 demonstra como o Brasil vem se deteriorando de uns anos para cá.) Em Deslembro, somos apresentados à adolescente Joana, que, depois de passar mais de uma década exilada em Paris com sua família, retorna ao Brasil contra a sua vontade, pois sua mãe Ana sente saudades da terra em que nasceu e cresceu – apesar de toda a repressão sofrida por parte dos militares. Assim, por mais que tente levar uma vida normal, Joana não consegue fugir de um questionamento decisivo: qual foi o destino de seu pai, que sumiu após ser perseguido pela ditadura?
A história particular de Joana é, portanto, uma representação de boa parte dos ferimentos que os anos de chumbo causaram no Brasil e que jamais foram devidamente cicatrizados, transformando-se em dores crônicas e em traumas que viriam a se alastrar também nas gerações posteriores. Aliás, é triste que ainda hoje existam diversas criaturas (algumas delas ocupando cargos importantes no governo) que insistem em negar todo o horror provocado pela ditadura, chegando ao cúmulo de dizer que quem foi perseguido/torturado/morto naquele período mereceu o destino cruel que recebeu. Claro que essas pessoas também fazem questão de ignorar o sofrimento de famílias inteiras diante do sumiço de um ente querido – e isto é algo que Deslembro ilustra com competência, mostrando como a ausência do pai de Joana acaba criando uma série de problemas até mesmo em situações pequenas (quando a garota resolve embarcar numa excursão escolar para Ouro Preto e precisa de um atestado de óbito de seu pai, ela descobre que… não foi possível existir atestado de óbito algum, pois a morte do indivíduo jamais foi esclarecida).
Não que Joana tenha deixado de viver sua vida: conforme foi crescendo, a adolescente desenvolveu uma personalidade própria, se interessou cada vez mais por Música e Literatura, começou a experimentar… coisas novas e conheceu um rapaz que logo se tornou seu namorado. Neste sentido, Deslembro serve também como um belo retrato de todas as situações habituais da juventude – a diferença, neste caso, é que a protagonista em si tem que lidar com um trauma relacionado ao país em que nasceu. Como se não bastasse, Joana ainda é interpretada por uma atriz estreante, mas que desde já demonstra merecer atenção em seus futuros projetos: retratando as dores, as dúvidas e as indignações da menina com uma sutileza digna de nota, Jeanne Boudier se sai muitíssimo bem ao injetar energia, carisma e calor humano à jovem Joana – e gosto particularmente de como a atriz transforma o seu bilinguismo em uma espécie de “válvula de escape” (quando ela está falando em português e de repente se sente intimidada por algo, imediatamente alterna o idioma e passa a se comunicar em francês).
Contando também com a performance delicada e convincente de Eliane Giardini, que estabelece a avó de Joana como uma figura que servirá tanto para guiar a garota quanto para acolhê-la, Deslembro demonstra inteligência ao recriar os anos 1980 sem chamar a atenção para si, trazendo de volta as televisões de tubo, os programas que passavam naquela época e as músicas que mais tocavam nas rádios, porém evitando ostentar seus esforços para o espectador. Além disso, por mais que a história narrada por Flávia Castro se situe na década de 1980, o fato é que os temas abordados aqui merecem ser discutidos e revisitados para sempre – ainda mais hoje, já que o Brasil parece cada vez mais disposto a flertar com seu passado sombrio.
E não se enganem: se isso está acontecendo hoje, é porque a sociedade brasileira preferiu “não tocar no assunto” e deixar de lado as barbaridades cometidas ao longo de sua História. Joana não pode simplesmente esquecer seu pai, assim como o Brasil também não pode simplesmente esquecer os horrores da ditadura.