Se houve algo que o ano de 2015 provou, com Vingadores: Era de Ultron e Homem-Formiga, foi que o subgênero “filmes de super-heróis” precisava urgentemente de uma inovação, já que, embora funcionassem como passatempos relativamente divertidos, os últimos projetos estrelados por personagens de quadrinhos insistiam em repetir fórmulas desgastadas e abordagens escassas em originalidade. Assim, é uma grata surpresa que, em vez de se assemelhar aos à maioria dos títulos adaptados de quadrinhos, Deadpool soe mais como uma feliz combinação de Guardiões da Galáxia com Kick-Ass. O resultado é um filme que, mesmo contando com sua parcela de problemas, é competente o bastante para servir de exemplo para as demais produções envolvendo personagens de HQs.
Inspirado nas HQs criadas por Fabian Nicieza e Rob Liefeld, o filme traz o mercenário Wade Wilson se apaixonando pela prostituta Vanessa, com quem rapidamente desenvolve um namoro. Ao descobrir que está com um câncer terminal, Wade aceita tornar-se cobaia para um tratamento que ativará as células mutantes em seu corpo e o livrará de sua doença. O que ele não esperava, porém, é que sua aparência física seria destruída no processo e que o médico seria um vilão impiedoso – que prefere atender pelo nome de Ajax. Com isso, Wilson decide se vingar daqueles que o deformaram e reconquistar o amor de Vanessa, vestindo uma roupa vermelha da cabeça aos pés e assumindo a identidade do falastrão Deadpool.
Demonstrando uma habilidade notável para um cineasta em início de carreira, Tim Miller realiza um trabalho correto ao comandar as cenas de ação, fazendo bom uso do slow motion para evitar que as práticas dos personagens soem incompreensíveis (e sem nunca abusar de cortes rápidos ou mover a câmera histericamente). Além disso, o diretor acerta em cheio ao dosar a sanguinolência extrema com a irreverência do politicamente incorreto – assim, com dez minutos de projeção, entra uma narração em off onde o protagonista diz: “Você provavelmente achou que isto era um filme de super-heróis, mas aquele carinha ali acabou de transformar o outro numa porra dum espeto“. Inclusive, o próprio sadismo de Deadpool rende momentos cômicos que ilustram bem o equilíbrio ideal entre a violência e o bom humor; as conversas pontuais entre o protagonista e um taxista, por exemplo, resumem isto de maneira fantástica.
E é um alívio, portanto, que os roteiristas Paul Wernick e Rhett Resse tenham entendido que transformar Wade Wilson num personagem tão humano quanto Peter Parker seria um erro – e sempre que surge um momento um pouco mais sério, logo vem uma piada inesperada que pode envolver Busca Implacável, por exemplo. Aliás, Deadpool constantemente dispara referências à cultura pop: com alusões a 127 Horas, Monty Python, Stallone Cobra, Curtindo a Vida Adoidado, Hora de Aventura e milhares de outras obras, o longa brinca com a cronologia zoneada dos filmes dos X-Men, com o fato da Fox não ser detentora dos direitos autorais de todos os super-heróis que gostaria de ter, com as limitações orçamentárias da produção (que custou modestos US$ 58 milhões) e com fracassos da carreira de Ryan Reynolds, como Lanterna Verde e, claro, X-Men Origens: Wolverine. O mais interessante, porém, é perceber como o filme aproveita todas as oportunidades de apontar e ridicularizar os clichês e fórmulas batidas das adaptações de quadrinhos, o que faz com que simpatizemos ainda mais com o “senso crítico” do próprio Deadpool (e por isso que é tão divertido vê-lo debochando de discursos elaborados e da forma apelativa como certa vilã aterrissa).
Eficaz também em seus exercícios de metalinguagem e nas frequentes quebras da quarta parede (que acabam servindo, inclusive, para apontar a instabilidade mental do protagonista), Deadpool traz Ryan Reynolds encarnando o personagem com uma segurança que a maior parte dos atores só adquire depois de dois ou três filmes interpretando o mesmo papel: exibindo um timing certeiro, o ator investe no tom de voz ideal para ilustrar toda a malandragem do anti-herói e obtém resultados igualmente satisfatórios na composição física que adota, ressaltando o quão imaturo e insolente é Deadpool através de pequenos detalhes em sua performance corporal. Aliás, os efeitos digitais aplicados na máscara usada por Reynolds permitem que este se expresse com uma precisão que falta aos demais personagens que têm seus rostos cobertos, saltando da incerteza ao espanto através dos movimentos dos olhos e das sobrancelhas. Quanto à natureza genérica e rasa do vilão Ajax… bem, é possível aceitar sua superficialidade a partir do momento em que o personagem-título começa a ironizá-lo impiedosamente, não?
O que é mais difícil de aceitar, porém, é a ideia de que Deadpool desconstrói completamente as convenções dos filmes de super-heróis, já que, a rigor, trata-se de mais uma história de origem – algo que o roteiro e a montagem percebem e tentam contornar brincando com a estrutura da narrativa, que começa in media res (ou seja: no meio da situação) e aos poucos vai inserindo flashbacks que mostram como Wade Wilson chegou ali. Por um lado, esta decisão escapa da linearidade com que a maioria dos filmes de super-heróis se constroem, o que é admirável; por outro, isto constantemente quebra o ritmo da trama, que se vê obrigada a voltar ao passado sempre que os eventos ocorridos no presente estão engatando. Mas o grande pecado, no entanto, é a fragilidade do terceiro ato, que resolve apostar num clímax desnecessariamente megalomaníaco e – o pior – apelar para o velho recurso da donzela em apuros (é meio hipócrita que um longa ironize tantos clichês, mas acabe se rendendo a um dos maiores que existem).
Assim, a impressão que fica é a de que algumas necessidades narrativas impedem Deadpool de ser transgressor como gostaria de ser, empregando a obscenidade e a irreverência a fim de esconder ou minimizar essas limitações pontuais. Mas não é só: entre uma série de ótimas piadas, há algumas tiradas que simplesmente não alcançam a graça esperada, como se forçassem o espectador a rir em certos instantes – e se elogiei a agilidade com que o filme cita outras obras populares, devo dizer também que, depois de um tempo, estas referências começaram a me cansar, pois passaram a soar menos como piadas e mais como uma necessidade desesperada de ostentar o conhecimento que o herói e os roteiristas têm do que os nerds de hoje estão habituados a consumir.
Subaproveitando alguns personagens que acabam servindo apenas para inchar a narrativa (a idosa cega vivida por Leslie Uggams, por exemplo, pouco tem a fazer na história), Deadpool não é consistente como alguns dos melhores filmes de super-heróis já produzidos, mas é suficientemente imaginativo e dinâmico. Resta esperar para ver como a natureza politicamente incorreta deste longa influenciará as próximas adaptações de HQs. Estou curioso desde já.