Boa parte dos motivos por trás do sucesso artístico de Pobres Criaturas, novo filme de Yorgos Lanthimos, pode ser abreviada simplesmente pela performance de Emma Stone (que repete a parceria com o diretor após A Favorita): dona de uma personalidade fora do comum que resulta de uma natureza ainda menos convencional, a protagonista Bella Baxter constantemente surge em cena falando e fazendo coisas que, para nossos padrões sociais, só podem ser descritas como… atípicas, para usar um eufemismo. Pois bem: se à primeira vista a personagem poderia facilmente soar excessiva, como se tentasse forçadamente parecer “excêntrica” apenas para chamar a atenção de todos ao seu redor, na prática o trabalho de Stone é fundamental ao levar o espectador a acreditar na persona daquela moça e – o mais importante – embarcar em seus sentimentos. Sim, constantemente rimos e nos espantamos com o que Bella é capaz de aprontar, mas também nos pegamos comovidos com suas descobertas atrozes sobre o mundo que a cerca e, claro, torcemos para que ela seja bem-sucedida em meio a este.
Isto, acreditem, ajuda a descrever também o filme inteiro ao redor de Bella Baxter: se em primeira instância Pobres Criaturas poderia soar obcecado em convencer o público de sua excentricidade (como um adolescente desesperado por atenção ao tentar posar de “esquisitinho”), no fim das contas este trabalho de Yorgos Lanthimos consegue a proeza de se apresentar verdadeiro e autêntico dentro de seu próprio – e, sim, excêntrico – universo.
Escrito por Tony McNamara (que co-escreveu A Favorita) a partir do livro homônimo que Alasdair Gray publicou em 1992, Pobres Criaturas começa com a imagem da jovem Bella pondo fim à própria vida. A partir daí, um salto no tempo nos leva à mansão do doutor Godwin Baxter (um Victor Frankenstein lanthimosiano), que vive acompanhado dos seres disformes que criou a partir dos pedaços de outros já mortos. Com um cérebro novo tão desenvolvido quanto o de um bebê recém-nascido (por razões que prefiro não revelar para evitar spoilers), Bella se comporta como uma criança num corpo adulto, contrastando uma inocência que a torna facilmente manipulável e uma pulsão sexual incontrolável que vem após descobrir o prazer próprio – algo que, vejam só, deixa o advogado Duncan Wedderburn tremendamente seduzido. Com isso, Bella e Duncan decidem casar-se e viajar o mundo – e, no processo, a protagonista aos poucos atravessa um arco de amadurecimento das capacidades cognitivas que a leva a adquirir força, autonomia e autoconhecimento suficientes para se emancipar e, com isso, começar a incomodar os homens da trama.
Sim, é uma premissa absurda que envolve elementos que a princípio certamente trarão desconforto a boa parte da audiência (em especial, pela inserção de um cérebro infantil num corpo adulto que transborda desejo sexual – o que não transforma Bella numa criança, já que estamos falando de um transplante de órgão, mas… ok, entendo a reação). No entanto, a primeira escolha de Yorgos Lanthimos que faz funcionar até mesmo os aspectos mais incômodos de Pobres Criaturas é a de situar-se num universo que faz jus ao delírio da trama em si e que não poderia ser mais explícito ao estabelecer o quão distante aquela narrativa está do nosso mundo. Assim, embora ambientada na era vitoriana e visitando cidades reais (Lisboa, Alexandria, Marselha, etc), a direção de arte de Shona Heath e James Price as transforma em cenários que frequentemente parecem saídos de um futuro distante que, por sua vez, é fortemente inspirado por antigas fábulas e fantasias; algo que se aplica também aos figurinos de Holly Waddington, que combinam a influência vitoriana a algo mais lúdico (por sinal, a atmosfera steampunk de Pobres Criaturas – com seus bondes que cruzam as cidades em fios nos céus e seus prédios que parecem caixas empilhadas e retorcidas – é tão gritante que me lembrou muito o game BioShock Infinite).
Da mesma forma, a estratégia visual adotada por Lanthimos e pelo diretor de fotografia Robbie Ryan (outro que trabalhou com o cineasta em A Favorita) de constantemente empregar lentes grandes angulares e/ou olhos-de-peixe funciona por realçar a deformidade daquele universo e de seus personagens, em alguns momentos fechando-se a ponto de criar a sensação de estarmos bisbilhotando a protagonista por um buraco. O que, aliás, não poderia ser mais condizente com a proposta geral de Lanthimos, que busca o desconforto à medida que o contrabalanceia com um humor inesperado, que extrai o melhor de seus atores em termos de timing cômico e que surge do contraponto entre as excentricidades de Bella e o constrangimento (merecidíssimo) de Duncan. Enquanto isso, as sequências que retratam o sexo entre a dupla não só se apresentam fundamentais para o andamento da história, como também surpreendem por evitarem qualquer tipo de glamourização, jamais explorando o corpo nu de Emma Stone (que também é produtora, vale lembrar) de modo a objetificá-lo.
O que nos devolve, portanto, ao aspecto que mencionei ao abrir este texto e que preciso discutir mais a fundo: a brilhante performance da atriz em questão, que me atrevo a dizer que é a melhor de sua já interessante carreira. Encarnando uma daquelas personagens que se tornam instantaneamente icônicas assim que surgem pela primeira vez, Stone adota uma série de estratégias sutis para demarcar as diferentes etapas do amadurecimento de Bella Baxter: se a princípio a encontramos com olhar disperso e com dificuldades para completar uma sílaba e para se manter de pé sem recair a um lado (isso enquanto arrota, tateia itens que não deveria tocar e senta-se para urinar diante de uma visita na sala), aos poucos a protagonista torna-se capaz de completar frases (e em velocidade cada vez maior), formular ideias com um mínimo de coesão e estabilizar minimamente sua postura física, chegando ao fim da projeção como uma mulher plenamente consciente de si, perfeitamente articulada e capaz de tomar as próprias decisões. Porém, o mérito de Stone está em levar o espectador a não perceber as transições entre cada “fase” da personagem, costurando uma à outra de forma tão orgânica que só ao final da projeção nos damos conta de como Bella mudou drasticamente.
Pois a grande revelação de Pobres Criaturas – e que mais do que justifica a decisão macabra que dá início à trama em si – é que Bella Baxter comprova como os homens em seu entorno se derretem totalmente por uma mulher de corpo adulto, mas com cérebro em primeira infância, incapaz de qualquer autonomia e facilmente manipulável para atender às suas fantasias sexuais; no exato instante em que a mesma moça atinge um grau de maturidade e independência que a liberta de quaisquer amarras sociais que tentem lhe impor, aqueles mesmos homens passarão a enxergá-la como motivo de raiva, vergonha e frustração (algo que Mark Ruffalo ilustra muitíssimo bem ao transformar Duncan num sujeito patético, humilhante, que nada pode fazer a não ser… xingar Bella enquanto a vê voar com as próprias asas).
Alongando-se um pouco mais do que o ideal em sua segunda metade, que passa a investir em situações que rodam em círculos em torno da mesma ideia central sem levá-las a muitos caminhos muito distintos, Pobres Criaturas ainda assim é uma obra que usa bem o absurdo e o incômodo como pontos de partida para uma discussão eficiente – e deliciosamente divertida – sobre a emancipação de Bella Baxter, esta mulher fantástica.
Visto durante o Festival do Rio 2023.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: