Há exatamente um ano, se encerrava aquele que veio a se tornar um dos maiores fenômenos da história recente da Televisão: Breaking Bad. Criada por Vince Gilligan, a série teve seu primeiro episódio em 20 de janeiro de 2008, mas curiosamente só veio a ser esta febre que é hoje em sua reta final. Foram muitos aqueles que conheceram a conturbada história de Walter White, sua família e do jovem Jesse Pinkman quando os últimos episódios do seriado estavam em exibição, indo atrás de todas as quatro temporadas e meia que os anteciparam. Posers? Claro que não, antes tarde que nunca – mesmo que não fosse uma obrigação para a maior parte do público.
Na trama, o professor de Química Walter White descobre um câncer pulmonar e, acreditando não ter muito tempo de vida, decide fazer o possível para arrecadar a maior quantia monetária possível e, assim, garantir o futuro educacional de seus filhos. Unindo-se ao jovem viciado Jesse Pinkman, Walt decide entrar no mundo das drogas e se descobre um gênio da fabricação de metanfetamina, um valioso produto cristalino. Conhecido no mundo do crime como Heisenberg, Walt se vê inseguro graças ao fato do cunhado, Hank, ser um agente da DEA (Drug Enforcement Administration), ao mesmo tempo em que vê o seu negócio crescer quando ele e Jesse vão trabalhar para o imprevisível Gus Fring, contando ainda com a ajuda do excêntrico advogado Saul Goodman para manter uma estabilidade financeira no empreendimento.
Idealizado por uma equipe de produção admiravelmente minuciosa, Breaking Bad via sua eficácia não só nos elementos básicos, como atuações e roteiro, mas em todos os outros. Como comentei brevemente na crítica do ótimo Ela, de Spike Jonze, a chamada teoria das cores já existe desde que o audiovisual caminha ao lado das cores, e atribuir esse valor apenas à obra de Vince Gilligan é um ato terrivelmente injusto. Por outro lado, seria igualmente indevido deixar de reconhecer a determinação com a qual os figurinistas, fotógrafos e designers de produção demonstraram ao adotar as cores como recurso narrativo. Besteira pseudo-intelectual? Bom, se quiser identificar dessa forma, não vou discutir; ainda que discorde plenamente.
Primeiramente, os figurinos: da mesma forma como as vestimentas trajadas pelo elenco alternavam entre a sobriedade e o chamativo dependendo do estado de espírito o qual cada personagem se encontrava, existiam sempre os significados que as cores das roupas indicavam. É possível dizer que Walt é o mais multicolorido de todos os personagens: é dominado pelo vermelho quando se encontra enérgico ou perigoso, pelo verde quando trata de um assunto relacionado ao dinheiro de modo geral e/ou amarelo quando se encontra pensativo. E se Skyler deixa sua estabilidade azul para se dedicar à monetização verde; também é curioso notar como Walter Jr. costuma usar com frequência o amarelo, a cor da luz do sol; no caso, a do casal White. Da mesma forma, ao passo que Marie vai deixando de ser uma personagem fútil e enjoativa para se tornar densa e pesada numa transição indicada pela substituição do roxo (cor da realeza, do poder e da riqueza) pelo preto, Hank também deixa de lado suas camisas coloridas para se entregar ao peso e à agressividade dos tons mais escuros. E percebam, por exemplo, que tanto Mike quanto Walt quando este último se identifica como Heisenberg jamais abandonam seus sombrios figurinos pretos. Sombrios.
Igualmente eficaz é o set design, capaz de servir ao mesmo propósito das colorações dos figurinos de forma igualmente funcional narrativamente. Creio que, se for destacar exemplos, acabarei escrevendo um parágrafo idêntico ao anterior, mas vale lembrar a claridade nos momentos de maior pureza ou serenidade, a sobriedade que domina os cenários nos momentos mais tensos e os significados indicados por uma gama de cores distintas (na maior parte das vezes, as primárias) quando essa variedade habita uma única paisagem. Da mesma forma, a fotografia também é hábil ao conferir essas mesmas características através de tons mais insípidos, sujos ou limpos dependendo da situação; aliás, os fotógrafos da série merecem todos os elogios possíveis graças à capacidade demonstrada por todos eles de optar com consciência e sabedoria todos os componentes a serem inseridos em cada plano, revelando uma construção invejável de mise-en-scène que atinge facilmente a genialidade criativa. Devo dizer, inclusive, que poucas vezes apreciei tanto uma concepção de mise-en-scène quanto em minha experiência com Breaking Bad, mas não graças à beleza plástica dos quadros, mas sim à inteligência e imaginação da equipe produtiva por trás dessas imagens.
Rica nos detalhes relacionados aos compostos químicos que aborda pontualmente (ilustrando, por exemplo, a fórmula e a massa moleculares da metanfetamina em seus créditos iniciais), a série também sabe tratar a Química de maneira ágil e sem requisitar um conhecimento prévio elevado por parte do espectador em relação ao tema – e a prova disso sou eu, leigo no assunto. Mas não é só nisso que Breaking Bad demonstra sua minúcia – e para isso, creio que terei que recapitular rapidamente o design de produção: percebam, por exemplo, a riqueza presente nos elementos que compõem os cenários, como a calça perdida por Walt no piloto aparecendo sutilmente no deserto visto no antepenúltimo episódio da série.
Contudo, o que fascina mesmo em Breaking Bad é a galeria de personagens fantásticos que povoam aquelas locações. Se no início sentimos que há sim um desejo por parte de Walter White em fazer algo por um bem maior no início, é graças à perfeita evolução que o personagem sofre ao longo da série que passamos a assumir uma outra opinião a respeito desse protagonista na reta final do seriado. Da mesma maneira, a interpretação de Bryan Cranston acaba servindo como peça fundamental para o sucesso do personagem do ponto de vista narrativo, demonstrando desconfiança e medo quando ainda é um iniciante no ramo das drogas com sua voz trêmula e expressão amedrontada, passando para a imponência e se tornando uma figura ameaçadora conforme vai crescendo neste ramo, tornando-se uma figura monstruosa e finalmente retornando à vulnerabilidade quando se torna pequeno diante das situações finais que enfrenta mesmo com sua reputação – sem contar o visual marcante e intimidador do personagem.
Ao mesmo tempo, Jesse Pinkman surge como um jovem claramente imaturo, inconsequente e “marrento”, mas que não deixa de ser apenas uma “criança” quando é posto em situações mais brutais e nem se torna uma pessoa necessariamente má, algo que fica claro quando conhecemos a interação que o personagem costuma estabelecer com crianças e quando somos apresentados à preocupação que sente com relação às pessoas que lhe são importantes no ponto de vista pessoal. Assim, a performance de Aaron Paul é incrivelmente competente ao conseguir reproduzir todas essas características, transformando Jesse num personagem multidimensional que rende seus momentos mais comoventes, mas que nunca perde sua identidade divertida e simpatizante.
Anna Gunn, por sua vez, consegue apresentar com habilidade extrema uma personagem determinada e cuja preocupação com o bem estar da família chega ao ponto de mudá-la totalmente, e mesmo suas atitudes imorais nunca a deixam perder sua motivação inicial. E se Betsy Brandt consegue fazer uma transição eficiente de uma personagem chata e fútil para uma profundamente dramática e insatisfeita, Dean Norris ganha o espectador desde o início, revelando-se um personagem carismático e cheio de tiradas das mais criativas, mas sem nunca deixar de ser obstinado a cumprir seus objetivos e sempre demonstrando preocupação com aqueles que se importa. Mas com relação a carisma profundo, Bob Odenkirk brilha com Saul Goodman, um personagem divertido e protagonista de diálogos sempre recheados de alívios cômicos funcionais, partindo também para a seriedade sem perder sua identidade descontraída; além de levar jeito para protagonizar um spin-off (que estreia no ano que vem). O Gus Fring de Giancarlo Esposito também funciona por soar ameaçador e brilhar com seu temperamento calmo que sempre lhe rende momentos de tensão competentes e até mesmo momentos cômicos admiráveis graças a essa inexpressão eficientemente caricata.
Com uma gama de personagens fascinantes, também não deixa de ser admirável a habilidade com a qual o roteiro conseguia introduzir pequenas sementes que, posteriormente, viriam a se tornar frutos aproveitáveis. Assim, ao longo de Breaking Bad, conhecemos várias figuras que, inicialmente, contavam com pouco tempo de tela surgindo como seres meramente caricaturais, mas que ganhavam cada vez mais destaque até se tornarem peças fundamentais para o andamento da narrativa. Um exemplo ideal da eficácia que acompanhava essa transição encontra-se no personagem Mike: contando com uma performance irrepreensível de Jonathan Banks, o assassino de aluguel de Gus Fring soava como uma persona absurda em suas eventuais aparições ao longo da segunda temporada da série, mas aos poucos ia ganhando uma importância cada vez mais elevada até se tornar não só um personagem-chave, mas também um ser naturalmente profundo e multifacetado; além de imponente e imprevisível.
Mas ainda que fosse farta em competência, Breaking Bad era um seriado imperfeito. Existiam momentos em que personagens não tão relevantes ganhavam um destaque além do necessário, além de inserções de elementos (como o ursinho caolho rosa) que não acrescentavam absolutamente à narrativa. Fora isso, era possível sentir que havia vários momentos em que os roteiros aparentavam estar sofrendo alguns inchaços e extensões que, de maneira sintomática, acabavam afetando eventualmente o ritmo da trama; principalmente na segunda temporada (a pior da série).
Nada, porém, que diminua o valor geral da série. Aliás, mesmo cometendo alguns pecados e criando situações que só serviam para aumentar a duração da série (o episódio The Fly, ainda que extremamente divertido, em nada acrescentou ao conjunto final da obra), Breaking Bad também se mostrava gratificante ao saber reconhecer algumas de suas características mais problemáticas e, se não corrigi-las totalmente, ao torná-las instigantes e enriquecidas – observem, por exemplo, a influência estética representada pelo ursinho caolho rosa na última aparição de Gus Fring. Demonstrando a mesma habilidade, a estrutura da série sabia resolver parcialmente seus problemas de ritmo ao apresentar situações apreensivas e surpreendentes logo após seus momentos mais arrastados, além de seguir uma condução crescente que faz com que o final da série soe fantasticamente eficiente enquanto clímax.
Também é interessante como a montagem consegue criar uma fluidez preservada na maior parte do tempo que é eficiente ao costurar com competência farta todos os acontecimentos revelados pela narrativa, uma característica que se torna ainda mais positiva graças à boa estruturação realizada pelo ótimo roteiro, que por sua vez é cheio de diálogos divertidíssimos, situações memoráveis e reviravoltas que funcionam pela espontaneidade. Aliás, Vince Gilligan também é digno de todos os elogios possíveis por sua competência ao conduzir a narrativa da série de maneira sempre sabendo construir os climas corretos para cada tipo de situação, sabendo saltar entre diferentes tons com organicidade; mérito que, claro, não deve ser atribuído apenas ao criador da obra.
Com um design de som fantástico e bem elaborado, Breaking Bad também é beneficiada pela ótima seleção de músicas que sempre apontam para um tema referente a algo que está sendo visto em tela ou que será introduzido posteriormente. Aliás, a regularidade com a qual isso ocorre é bem, bem elevada. E por que não destacar o excelente trabalho de Dave Porter, responsável pela memorável música tema reproduzida na abertura? Trata-se de uma música evocativa e cujo tom enigmático levemente “insano” acaba por chamar a atenção do ouvinte/espectador, além de simplesmente ficar na cabeça por bons fatores.
Concebida com uma roupagem altamente cinematográfica que não devia nada às melhores produções dramáticas e crime movies identificáveis no mercado atual da Sétima Arte, Breaking Bad era uma série que funcionou não só por saber alternar entre o drama, a tensão farta a descontração com habilidade, mas também por todo o seu esmero visto na produção da série. Fazendo uma pequena “metalinguagem”, tratava-se de um material viciante e de alto valor.
Breaking Bad faz falta, e tomara que Better Call Saul possa eliminar parte desta saudade. O que creio que não acontecerá assistindo à tal de Metástasis…