Negar a importância do tema “economia” (ainda mais em tempos de crise) é uma atitude pouco razoável, já que, querendo ou não, a conjuntura da sociedade na qual vivemos nos direciona (a contragosto) para ser afetados diretamente pelo dinheiro e por quem o gerencia. Por outro lado, não é difícil concordar que obras envolvendo o mundo das finanças, especulações e ações têm altas probabilidades de resultarem em experiências desinteressantes, já que o roteiro certamente terá de empregar diálogos altamente técnicos e que podem facilmente confundir a cabeça do espectador. E é justamente este o grande trunfo do diretor Adam McKay (cuja carreira é composta por comédias como Ricky Bobby, O Âncora e sua continuação, Tudo por um Furo) neste A Grande Aposta: reconhecendo a natureza aborrecida do assunto a ser discutido, o diretor (que também assina o roteiro junto a Charles Randolph) resolve o problema investindo num banho de criatividade estilística e, de quebra, ainda cria uma atmosfera que salta entre a tensão e o bom humor com uma precisão admirável.
Baseado no livro A Jogada do Século, de Michael Lewis, o longa se concentra em personagens envolvidos no mundo da economia e que conseguiram prever a crise imobiliária de 2008, que se iniciou nos Estados Unidos e abalou o resto do mundo por consequência. Assim, os indivíduos apostaram contra o mercado e se beneficiaram com colapso do sistema financeiro do país – e acredito que todos já tenham previsto o resultado disso. Graças à ausência da regulamentação necessária, títulos hipotecários, suas dívidas e outros “itens” especulativos começaram a causar danos quebrando o banco Lehman Brothers (e que recentemente ressurgiu como uma marca de uísque – uau!). E é claro que quem conseguiu prever o que estava por vir conseguiu tirar algum proveito do colapso.
Beneficiado por um roteiro inteligente e ágil, o filme encontra métodos intrigantes de explicar brevemente termos como “CDSs”, “CDOs” e subprimes não apenas ao inserir pontualmente descrições pequenas escritas em algum canto na tela, mas também ao investir em momentos geniais que trazem figuras populares interrompendo a narrativa para ensinar com irreverência o significado de certos termos – temos Selena Gomez, Anthony Bourdain e Margot Robbie (e esta última remete, obviamente, a O Lobo de Wall Street, que também utilizava o bom humor para abordar questões do mercado financeiro). Neste sentido, as narrações múltiplas e a quebra da quarta parede – que traz personagens falando diretamente com o público – também desempenham um papel funcional ao apresentarem de maneira objetiva os indivíduos envolvidos na trama e o cenário em que estes se encontram.
Aliás, esta adorável inquietação de A Grande Aposta com relação à linguagem se aplica também à excepcional direção de Adam McKay (que já se estabelece como a minha segunda preferência ao Oscar de melhor direção, atrás somente de George Miller): compondo um trabalho estético invejável junto à fotografia de Barry Ackroyd, o cineasta e o diretor de fotografia ganham pontos por investirem na câmera na mão, em planos agitados, em zooms enérgicos para frente ou pra trás emular e em focos que demoram a se ajustar, emulando constantemente um estilo de filmagem recorrente em documentários e conferindo um ar de realismo ao que se vê em tela. Como se não bastasse, há ainda o desempenho de Hank Corwin à frente da montagem, que é fabulosa ao entrecortar o fluxo da narrativa com variadas imagens aleatórias extraídas da TV ou de outras fontes (retratando brevemente a realidade norte-americana do momento), aplicar flashforwards e conceber sequências paralelas de modo a enriquecer a percepção que temos acerca dos personagens, criando ainda rimas entre algumas situações que merecem elogios; e não restam dúvidas de que o Oscar nesta categoria merece ser destinado a Corwin.
Contudo, a competência de McKay também se encontra na própria maneira com que o diretor conduz a narrativa: conseguindo alternar com uma segurança impressionante entre a sobriedade e alívios cômicos que beiram o absurdo em determinadas ocasiões, o diretor consegue criar um clima de tensão crescente e palpável no terceiro ato da película independente da complexidade técnica que domina a maior parte dos diálogos do roteiro, despertando o interesse e a apreensão no espectador mesmo que este não compreenda a fundo o mundo da economia. Da mesma forma, o filme é particularmente inteligente e honesto ao escapar de armadilhas maniqueístas e lembrar o público do quão terríveis foram as consequências do colapso econômico, evitando enaltecer das ações de seus personagens e tratá-los como heróis que se deram bem por terem previsto o que ocorreria em 2008 – para se ter ideia, em dado momento da projeção, o personagem vivido por Brad Pitt interrompe a comemoração de dois indivíduos que enriqueceram com a crise e enfatiza a quantidade de pessoas que perderão seus empregos e casas (vítimas inevitáveis neste tipo de situação).
Contando com um elenco que abrange nomes naturalmente irresistíveis, a produção traz Ryan Gosling visivelmente à vontade como um narrador/executivo que claramente compreende as imperfeições do sistema financeiro sem que sinta a obrigação de demonstrar tal consciência – e sua polidez é o faz com que o personagem ganhe o público logo de cara. No entanto, ainda que Brad Pitt (que também assina como produtor) tenha uma participação modesta – o que não tira o fato de que sempre é um prazer ver o ator em cena -, os dois pilares da obra são certamente Christian Bale e Steve Carell: o primeiro firma com objetividade a personalidade antissocial e fora do comum que caracterizam o personagem (e o fato do ator surgir sozinho com frequência ilustra isso de modo efetivo), sem contar que o fato de emitir sons aleatoriamente, sorrir quando não deveria e raramente encarar as pessoas com quem fala denota um preciosismo fascinante por parte de Bale com relação aos detalhes que imprime em sua interpretação; enquanto Carell (que já demonstrou um potencial admirável em produções dramáticas, como foi mostrado por Foxcatcher) surge na pele de um homem cuja raiva e amargura são correspondidas de maneira ideal pelo ator.
Ainda que o andamento da narrativa às vezes seja frenético demais e o linguajar excessivamente técnico utilizado pelos personagens várias vezes deixe o espectador perdido (neste sentido, vale apontar que não se trata de uma produção que agradará facilmente a todos os públicos), A Grande Aposta poderia formar uma sessão dupla interessante com o eficaz Margin Call. Ao expor a necessidade de se aumentar a regulamentação em cima dos ricaços que investem em Wall Street (e que encabeçam as megacorporações em geral), o longa se consolida como um dos indicados ao Oscar mais tematicamente relevantes do ano. E também como um dos melhores.
Para um filme que discute um assunto chato como economia, A Grande Aposta é surpreendentemente interessante.