A Vida Invisível é um filme que tinha tudo para cair no sentimentalismo barato. Obviamente interessado em flertar com o melodrama, o novo longa de Karim Aïnouz (Madame Satã; Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo; Praia do Futuro) conta uma história que traz diversos elementos novelescos por natureza: amores proibidos; brigas familiares; sonhos despedaçados; relações interrompidas de forma trágica; duas irmãs separadas por uma longa distância; etc. Em compensação, o trabalho de Aïnouz ao conduzir a narrativa é tão eficiente que acaba fazendo até os conflitos mais esquemáticos do roteiro funcionarem bem – e, depois de um primeiro ato que custa um pouco a encontrar o ritmo que lhe faltava, o filme decola de vez a partir do momento em que os contrastes entre as duas personagens centrais começam a se desenvolver.
Baseado no livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, o longa tem início no Rio de Janeiro em plena década de 1940 e se concentra em duas irmãs: Eurídice, uma jovem introvertida e resignada às vontades de seu pai autoritário, mas que sonha em se tornar uma pianista bem-sucedida; e Guida, uma moça bem mais disposta a conhecer o mundo ao seu redor e a passar por cima das regrinhas impostas pelo patriarcalismo de sua família. Unidas e companheiras desde sempre, as duas irmãs acabam sendo separadas por um destino triste: depois que Guida foge para a Europa a fim de vier com o namorado, Eurídice permanece no Brasil, se casa e tem um filho. No entanto, chega um dia em que Guida engravida, termina o namoro e resolve voltar ao Rio – e, quando seu pai a reencontra gestante, imediatamente a expulsa de casa. Guida, portanto, perde o rumo e se vê completamente abandonada, ao passo que Eurídice leva uma vida de submissão e aborrecimento. Aparentemente, as duas irmãs estão fadadas a nunca mais se reencontrar.
Hábil ao resgatar a lógica visual e estilística do Rio de Janeiro dos anos 1940, o diretor de arte Rodrigo Martirena faz um bom trabalho não só ao criar os objetos de cena que se esperariam de uma produção ambientada naquela época (como os carros e as mobílias), mas também a aparência das ruas, dos becos e dos prédios habitados pelas protagonistas – o Centro do Rio, em especial, surge idêntico àquele que costumamos ver em fotos antigas, rejeitando qualquer modernismo em sua composição. Além disso, o trabalho da figurinista Marina Franco se mostra fundamental ao definir as personalidades de Eurídice e Guida, investindo em cores que se contrastam justamente por serem tão intensas (o que chega ao ápice na cena ambientada num restaurante, quando o amarelo energizante de uma se contrapõe ao vermelho hostil da outra). Mas o que faz A Vida Invisível soar ainda mais nostálgico – e caloroso – é a brilhante fotografia de Hélène Louvart, que investe pesadamente em uma textura granulada que, aliada aos tons de branco sempre defasados (em alguns momentos, quase estourados), faz o filme soar como um registro há muito guardado em um álbum de memórias e revisitado após vários anos.
E se esta última frase pareceu melosa, é porque faz jus, em parte, às intenções de Karim Aïnouz, que não esconde suas intenções melodramáticas ao comandar A Vida Invisível – intenções estas que, caso executadas por um cineasta menos talentoso, provavelmente resultariam em uma obra tão artificial quanto a pior das novelas das oito. Felizmente, Aïnouz é bem-sucedido em contornar os riscos de sua abordagem de maneira admirável, conferindo peso dramático a situações que tinham tudo para parecer novelescas, mas que são desenvolvidas com a delicadeza necessária. Além disso, sempre que o filme está prestes a sucumbir à cafonice água-com-açúcar, Aïnouz encontra um jeito de nos surpreender – um exemplo disso está na sequência ambientada num restaurante, que chega perto de soar como mera conveniência de roteiro, mas que acaba se transformando em uma ironia quase poética do destino.
Ainda assim, A Vida Invisível pertence mesmo a Julia Stockler e a Carol Duarte, que criam personagens com personalidades obviamente contrastantes, mas que se complementam de forma tão natural que acaba sendo difícil imaginá-las separadas (o que faz a barreira que o roteiro impõe entre elas soar ainda mais dolorosa): a primeira retrata Guida como a dona da jornada mais trágica da narrativa, não se deixando definir pelo desprezo de seu terrível pai ou pelo menosprezo de seus colegas de trabalho homens; já a segunda estabelece Eurídice como uma mulher que, ao contrário de sua irmã, cedeu às imposições/vontades dos homens ao seu redor, desperdiçando seu potencial como pianista justamente por ser subjugada não só pelo pai, mas pelo marido Atenor (com o qual divide uma relação totalmente fria e impessoal). Para completar, a presença de Fernanda Montenegro no terceiro ato funciona não apenas pelo fato de ser Fernanda Montenegro (o que já seria o suficiente), mas também por representar o resultado trágico de décadas e décadas de diminuição diante dos machos-alfas que a cercaram.
Neste sentido, A Vida Invisível pode até se passar na década de 1940, mas o problema retratado aqui se estende até os dias de hoje; o que, por si só, é um forte testemunho de como a Sociedade evoluiu bem menos do que deveria ao longo dos últimos 70 anos. O sexismo, portanto, sempre foi especialista em arruinar vidas promissoras, calando inúmeras vozes graças a uma construção social destrutiva – e, desta forma, é compreensível que a luta por uma voz seja não apenas prudente, mas fundamental. Afinal, imaginem a quantidade de talentos que deixamos de conhecer porque o mundo foi cruel demais para deixá-los brilhar.