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Título Original

Aquarius

Lançamento

1 de setembro de 2016

Direção

Kleber Mendonça Filho

Roteiro

Kleber Mendonça Filho

Elenco

Sônia Braga, Humberto Carrão, Maeve Jinkings, Pedro Queiroz, Julia Bernat, Irandhir Santos, Barbara Colen, Paula de Renor, Carla Ribas e Thaia Perez

Duração

142 minutos

Gênero

Nacionalidade

Brasil

Produção

Saïd Ben Saïd, Emilie Lesclaux e Michel Merkt

Distribuidor

Vitrine Filmes

Sinopse

Clara (Sonia Braga) tem 65 anos, é jornalista aposentada, viúva e mãe de três adultos. Ela mora em um apartamento localizado na Av. Boa Viagem, no Recife, onde criou seus filhos e viveu boa parte de sua vida. Interessada em construir um novo prédio no espaço, os responsáveis por uma construtora conseguiram adquirir quase todos os apartamentos do prédio, menos o dela. Por mais que tenha deixado bem claro que não pretende vendê-lo, Clara sofre todo tipo de assédio e ameaça para que mude de ideia.

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Aquarius | Crítica

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(Obs.: esta crítica não contém spoilers, mas… talvez traga alguns detalhes reveladores demais. Então sugiro que você a leia após assistir ao filme.)

Em seu longa-metragem de estreia, o magistral O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho nos apresentava a personagens claramente desconfortáveis e que, mesmo sem ter absolutamente nada em comum uns com os outros, coabitavam em meio a uma trama que criava intrigas entre classes sociais distintas. Pois na nova obra do diretor, o caminho traçado é bastante diferente: trazendo adoração e apego como componentes fundamentais pra narrativa, Aquarius é um filme encantador sobre o significado que as memórias têm para a vida de qualquer pessoa e do quão importante é mantê-las vivas (seja material ou mentalmente) em vez de deixar que elas simplesmente desapareçam ou sejam substituídas por versões recauchutadas.

Escrito e dirigido por Mendonça Filho (que também é crítico cinematográfico), o longa segue os passos de O Som ao Redor ao explicitar os três atos do roteiro chamando-os de capítulos e dando nomes aos mesmos, se iniciando em 1980 e nos apresentando à jovem Clara, que mora no edifício “Aquarius” e dá uma festa para comemorar os 70 anos de sua tia Lúcia. Após este prólogo, avançamos para os tempos atuais onde Clara já é uma crítica musical conceituada e segue residindo no mesmo lugar onde sempre se situou. Entretanto, a vida da protagonista começa a ser importunada depois que a construtora Bonfim esvazia o prédio inteiro a fim de derrubá-lo para construir uma nova versão. Clara, contudo, recusa a proposta de se retirar do apartamento que vem lhe rendendo lembranças significativas através de décadas – o que leva a empresa a investir em diversas tentativas de incomodar a antiga moradora, transformando o edifício na habitação mais incômoda possível.

Só de ler a descrição acima já é possível imaginar que Aquarius flertará com questões emocionais bastante intensas, já que a jornada de Clara não só enaltece a importância de se manter perseverante e resistente como ainda dedica uma “carta de amor” ao conceito de memória afetiva – e este apreço da personagem central pelo seu apartamento é sintetizado através de uma frase curiosa: “Quando você gosta, é vintage; quando você não gosta, é velho“. Outro momento fundamental para que a principal mensagem do roteiro seja concretizada encontra-se pouco depois de Sônia Braga aparecer em cena, onde a protagonista é entrevistada e explica o porquê de ainda nutrir uma preferência inegável por discos, CDs e outras formas de se apreciar Música fisicamente através de um relato memorável (o que não quer dizer que ela se oponha às mídias digitais, como MP3, iPhone e etc). Fazendo uma comparação que pode soar banal e tola, é possível dizer que Kleber Mendonça Filho entende quem investe centenas de reais em coleções de Blu-rays ou se recusa a vender revistas em quadrinhos compradas há décadas; aliás, não só entende como ainda crê que é melhor preservar estas preciosidades do que trocá-las por substituições inferiores, pois as originais documentam parte da trajetória de cada um de seus donos.

Ainda assim, não são apenas os bens materiais que tornam aquele local tão relevante para Clara (e reduzir esta análise apenas a isso seria de uma leviandade tremenda) –  neste sentido, o primeiro capítulo funciona ao implantar sutilmente a ideia de que o afeto por lembranças é “hereditário”, trazendo uma cena de sexo que pode parecer gratuita, mas que serve para definir o quão significativo é um armário para a tia Lúcia e continuará sendo para a protagonista. Isso sem contar, é claro, que o apartamento traz memórias coletadas com afinco por Clara ao longo de décadas de sua própria vida, partindo da já citada festa que ocorre nos minutos iniciais até culminar nos dias atuais, passando também pela criação de filhos, pela superação de um câncer que lhe arrancou a mama direita e pelo desenvolvimento de uma carreira como crítica musical que incluiu a publicação de um livro (que traz uma dedicatória que, além de tocante, vem a desempenhar um papel crucial num dos momentos-chave da produção).

E já que mencionei tantas vezes o capítulo ambientado na década de 1980, é interessante constatar como os diretores de fotografia Fabricio Tadeu e Pedro Sotero retratam aquele período utilizando uma imagem defasada que remete, obviamente, às produções brasileiras daquele tempo; além das cores amareladas que tradicionalmente servem para indicar nostalgia. Por sua vez, Kleber Mendonça Filho prova mais uma vez que merece ascender com um dos grandes nomes do Cinema nacional contemporâneo, desenvolvendo elegantemente a tensão numa cena que envolve dois carros numa garagem (instante este que envolve vários planos fechados e movimentados acompanhados de cortes agoniantes) e acertando ao enfocar a região pélvica de um garoto de programa com o intuito de tratá-lo propositalmente como um instrumento sexual, destacando-se também no travelling que parte de uma janela (de onde podemos ver os trabalhadores da construtora Bonfim entrando no prédio) e cruza a rede em que Clara dorme.

Igualmente fascinante é aquele instante onde a personagem principal começa a ouvir ruídos entorno de sua residência e o diretor começa a mover o quadro pelo apartamento, como se a próxima câmera também estivesse tentando “buscar” aquele barulho – e sempre é bom descobrir um cineasta que sabe empregar com sabedoria o “salto no eixo”, como pode ser observado numa sequência de pesadelo. Completando, os diretores de arte Juliano Dornelles e Thales Junqueira são hábeis ao retratar não somente a fixação de Clara por Música através da vastíssima coleção de discos que ocupa as paredes do imóvel, mas os elementos que ligam a protagonista às décadas passadas (e me chamou a atenção, por exemplo, o pôster de Barry Lyndon que sempre aparece em tela). Para concluir, é particularmente intrigante ver como a comodidade representada pelo apartamento de Clara surge diametralmente oposta à imundice que domina progressivamente o edifício “Aquarius”, que marca presença cada vez mais acompanhado de sujeiras que vão de colchões queimados até fezes espalhadas pelo chão, passando, claro, pelos adesivos da construtora Bonfim que potencializam a ameaça ilustrada por esta.

Mas claro que o aspecto mais importante de Aquarius é mesmo Clara e o desempenho arrebatador de Sônia Braga (que merece os prêmios mais relevantes da indústria por seu trabalho aqui): introduzida como uma mulher serena e que vive se empenhando para manter conectada à alegria (participando de ações que envolvem gargalhar como esforço físico), a personagem surge como pessoa amável que se dispõe a preservar o positivismo e a boa educação independente das más situações que integram seu passado (como o câncer de mama) e do presente que vem sendo ameaçado por “ladrões de memória afetiva”. Desta forma, ela é apresentada como um ser humano impossível de gerar qualquer tipo de antipatia, já que exibe uma paixão incontrolável por seus parentes e faz questão de surpreender sua empregada em seu aniversário tocando uma música no piano para parabenizá-la. Do mesmo modo, a afeição de Clara por Música é percebida em suas diversas citações a artistas e numa emblemática cena onde a protagonista dança solitária, mas repleta de contentamento ao som de Fat Bottomed Girls, do Queen.

Oferecendo uma performance tranquila e contida, Braga compõe a personagem como uma figura cujo tom de voz ameno e harmonioso que, às vezes, até sugere certa ambiguidade (será que ela está realmente sã e estável psicologicamente?); e mesmo nos instantes onde é confrontada com palavras dolorosas, Clara é capaz de resistir com uma segurança impressionante (atentem-se à tristeza notável, porém refreada que toma conta de sua entonação durante uma briga com a filha – Maeve Jinkings, também de O Som ao Redor). Além disso, a atriz (que, nesta altura do campeonato, está consolidada como um ícone do Cinema nacional) desenvolve um trabalho complexo e denso que resulta de atividades que já duram décadas; e chega a ser impressionante o domínio que Braga em sua interpretação física, mostrando-se capaz de exibir fragilidade, felicidade ou indignação crescente através de movimentos faciais sutis e que certamente seriam substituídos por alternativas mais óbvias (como semblantes entristecidos, sorrisos abertos ou gritos mais constantes) caso estivéssemos nos referindo a alguém menos talentoso (notem, por exemplo, o olhar plácido e a leveza que toma conta do rosto de Clara ao escutar uma música particularmente significativa).

De maneira similar, Sônia Braga também é bem-sucedida ao retratar os desequilíbrios que invariavelmente abalam suas condições emocionais, algo que pode ser notado numa conversa onde o salva-vidas da Praia da Boa Viagem (interpretado por Irandhir Santos) sente-se incomodado com a possibilidade de Clara estar “dando encima” dele (e o diretor é inteligente ao terminar a cena com um plano que divide a dupla através de duas janelas separadas). No entanto, é interessante acompanhar o surgimento de um sentimento cada vez mais amargo no âmago da personagem à medida em que as circunstâncias envolvendo a construtora Bonfim e o edifício “Aquarius” vão se tornando mais acirradas – e conforme a projeção avança, a expressão suave de Clara vai cedendo lugar a um semblante mais pesaroso e consternado, atingindo o ponto mais alto dessa trajetória numa sequência que, para mim, merece ser imortalizada no imaginário cinematográfico do Brasil: aquela onde a paciência da protagonista se esgota de vez e dá uma bronca enérgica no antagonista vivido por Humberto Carrão, afirmando que, ao contrário do que as pessoas costumam pensar, são os ricos quem realmente deveriam ter mais educação.

Já do ponto de vista político, Aquarius pode surpreender (ou frustrar) aqueles que esperam grandes debates ideológicos por causa de toda a polêmica que vem se desenvolvendo desde o Festival de Cannes, onde a equipe responsável pelo filme protestou contra o impeachment que ocorreu há algumas semanas no país – o que interessa mesmo é a jornada de Clara em busca de persistência e manutenção de suas memórias afetivas. Por outro lado, a produção também não deixa a desejar nos momentos onde comenta brevemente a atual situação do Brasil e a disparidade gritante entre classes sociais, explicando como um cano representa a separação entre a área mais rica e mais pobre da região onde o longa se passa e brilhando de modo definitivo na já mencionada briga entre a personagem principal e o antagonista (que, reitero, é digna de ser lembrada daqui para a eternidade).

Fortalecido por uma fabulosa seleção de canções que sempre têm algo a ver com o que se passa na vida do protagonista (e que incluem de Queen até Roberto Carlos, passando por Gilberto Gil, Alcione e Taiguara Chalar da Silva), Aquarius é um estudo de personagem rico e emocionalmente complexo que não depende de nada apelativo ou grandioso em escala para provocar uma verdadeira catarse no espectador – e tendo feito O Som ao Redor e este segundo longa, Kleber Mendonça Filho demonstra que merece se destacar no Cinema brasileiro que temos hoje.

Creio que, para um filme que busca enaltecer o valor das lembranças e do apreço pelo passado, “inesquecível” é um elogio mais que apropriado para Aquarius.

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