Consolidado como um dos maiores sucessos de Agatha Christie assim que chegou às lojas em 1934, Assassinato no Expresso do Oriente era um livro curto e objetivo que sabia desenvolver uma trama de mistério que prendia a atenção do leitor de maneira bastante eficaz, transformando-se num passatempo divertido e ágil que ganhava uma força ainda maior graças à ilustre presença do detetive Hercule Poirot. Situada num contexto que englobava sírios, turcos, belgas, ingleses, franceses e norte-americanos, essa era uma história ambiciosa que contava com um protagonista imperfeito, uma vítima que talvez merecesse o trágico destino que recebeu e uma reviravolta final que não só surpreendia o leitor como também testava os princípios éticos e morais de Poirot.
Assim, foi um alívio constatar que o diretor Sidney Lumet (Rede de Intrigas, Um Dia de Cão e Serpico) tenha sido bem-sucedido ao adaptar o texto de Christie para o Cinema: fortalecido por um elenco estelar que incluía Albert Finney, Lauren Bacall, Sean Connery, Anthony Perkins, Michael York e Ingrid Bergman (esta, inclusive, ganhou o Oscar por seu desempenho), o filme chegou aos cinemas em 1974 e resgatou com precisão o suspense instigante que havia no livro. Além de converter em imagem aquilo que era apenas imaginado na obra original (como o encontro de culturas que ocorria na estação do trem), o longa era inteligente ao iniciar a projeção com recortes de jornal que mostravam o sequestro da pequena Daisy Armstrong, pois além de antecipar algo que seria crucial na trama a seguir, isso também permitia que o espectador fosse envolvido num clima de angustia e hostilidade desde o princípio.
O que nos leva à segunda adaptação feita para o Cinema (há também um telefilme de 2001 que trazia Alfred Molina sob a pele de Poirot, mas aí é outra história): dirigido, produzido e estrelado pelo mesmo Kenneth Branagh de Henrique V, Hamlet, Muito Barulho Por Nada, Thor e Frankenstein, de Mary Shelley, esta nova versão de Assassinato no Expresso do Oriente se sai bem ao recuperar o espírito descompromissado e engajante que existia tanto no livro de Agatha Christie quanto no longa de Sidney Lumet. Por outro lado, ainda que seja uma diversão moderada e relativamente charmosa, os exageros ocasionais cometidos por Branagh quase levam o filme a cair no caricatural.
Mas justiça seja feita: é possível que alguns dos problemas do novo Assassinato no Expresso do Oriente se devam mais ao roteiro de Michael Green; que, sim, acertou em Logan e Blade Runner 2049, mas também errou grosseiramente em Lanterna Verde. A trama é a mesma das versões anteriores: no inverno de 1934, o detetive belga Hercule Poirot resolve tirar férias e embarca num trem que cruza o Oriente na direção de Istambul. Acompanhado de cerca de uma dúzia de outros viajantes, Poirot imediatamente se vê obrigado a desvendar o que de fato ocorreu com Samuel Ratchett, que foi misteriosamente assassinado dentro do trem. Desta forma, o detetive se lança numa série de interrogatórios e se envolve numa trama que, aos poucos, mostra-se interligada com o caso de Daisy Armstrong, uma menininha que foi sequestrada e morta no passado. Aí surge a dúvida: quem tirou a vida de Ratchett?
Não dá para dizer que preservar a mesma premissa que já vimos tantas vezes é um problema, pois trata-se de uma obra influente que merecidamente angariou uma legião de apreciadores com o passar das décadas – e, como toda adaptação, é bom respeitar a essência do material-fonte (a não ser que o objetivo seja transformá-lo em algo melhor e ainda mais significativo). Em contrapartida, é fundamental que a releitura faça jus ao seu prefixo e traga alguma característica que lhe é especial e única, inovando a versão original em vez de reverenciá-la pura e simplesmente. E isto é algo que Michael Green raramente busca fazer: apoiando-se somente naquilo que já funcionou no texto de Agatha Christie, o roteirista realiza um trabalho conformista (leia-se: preguiçoso) demais para acrescentar qualquer novidade notável à história – e creio que até quem nunca leu o livro ou assistiu ao filme de Sidney Lumet perceberá a falta de imaginação narrativa do novo Assassinato no Expresso do Oriente (com a exceção, talvez, da revelação final). O mais decepcionante, porém, é que nem os poucos momentos em que o roteiro tenta atualizar a trama concebida por Christie são bem-sucedidos; e embora admire a representatividade que é sugerida nesta nova versão, é difícil negar a artificialidade existente naquele diálogo forçadíssimo no qual Daisy Ridley confronta o racismo de Willem Dafoe.
De todo modo, se em termos de história o filme é irregular, ao menos o elenco é forte o bastante para ganhar a atenção do público (olhem o pôster e atentem-se à quantidade de indicados ao Oscar). É complicado falar sobre cada um dos vários personagens que estão presentes, de fato, mas ao menos três dos coadjuvantes merecem destaques especiais: a simpática Daisy Ridley (que despontou como a grande heroína de Star Wars) confere doçura e – até certo ponto – vulnerabilidade à jovem Mary Debenham, o que serve para desarmar as expectativas do público; Michelle Pfeiffer surge como a sucessora perfeita de Lauren Bacall, usufruindo da habilidade que tem para criar personagens venenosas (como vimos no recente mãe!) ao passo que surpreende quando revela um peso dramático inesperado no terceiro ato; e Johnny Depp enfim participa de um blockbuster sem sucumbir às variações surtadas de Jack Sparrow que vêm enchendo o saco, o que é um alívio. Mas quem se sobressai mesmo é Kenneth Branagh, que encontra o equilíbrio ideal entre as excentricidades de Hercule Poirot (como seu metodismo notável) e a sabedoria que acrescenta um ar quase imponente ao detetive, algo que nem a boa versão de Albert Finney alcançava com a mesma precisão.
E não é só como ator que Branagh obtém sucesso, já que, como foi dito anteriormente, ele também dirige (e produz) o projeto: mantendo-se fiel ao espírito escapista que Agatha Christie sabia desenvolver de maneira irresistível, o cineasta consegue estabelecer uma atmosfera que funciona tanto como um entretenimento agradável quanto como um suspense que sempre atrai o interesse do espectador, alcançando um balanceamento sutil, mas fundamental para uma história como Assassinato no Expresso do Oriente. Além disso, Branagh e o diretor de fotografia Haris Zambarloukos encontram soluções visuais criativas, como o longo plongée que acompanha Poirot indo de um cômodo a outro até que enfim se depara com o corpo de Ratchett (isso leva o público a sentir a reação do detetive sem que precise vê-la). E se o designer de produção Jim Clay resgata o glamour da obra original ao mesmo tempo em que ilustra objetivamente o cruzamento de várias culturas distintas numa estação de trem, a decisão de rodar todos os flashbacks em preto e branco não só é estilosa como ainda facilita a compreensão do espectador, pois existem momentos em que conceitos como os de montagem paralela e flashback são misturados pelo montador Mick Audsley.
Já em outros instantes, Branagh se rende à obviedade do roteiro e comete alguns excessos, o que pode ser observado especialmente no tanto de cafonice que há na forma com que o desfecho é apresentado – e também é sintomático que, aqui e ali, o diretor sinta-se na obrigação de incluir certas passagens apenas para manter o público médio em sua zona de conforto (como aquela em que Poirot persegue o personagem de Josh Gad fora do trem, que parece existir para evitar que os espectadores se entediem entre um diálogo e outro). O mesmo pode ser dito sobre o trabalho do compositor Patrick Doyle (colaborador habitual de Branagh), que investe em melodias óbvias e bregas que procuram ressaltar tudo de maneira tola. Para completar, o uso exagerado de computação gráfica acaba enfraquecendo a experiência como um todo, já que o espectador nunca deixa de se atentar à artificialidade dos castelos orientais, das montanhas geladas e do trem que dá título ao filme (isso porque nem citei a pavorosa tela verde que surge atrás dos personagens de vez em quando).
Encerrando-se com um “gancho” que deixa tudo pronto para a eventual continuação que adaptará Morte no Nilo (depois de competir com Albert Finney, tudo indica que Kenneth Branagh tentará fazer o mesmo com Peter Ustinov, que viveu o detetive Poirot no longa de 1978), Assassinato no Expresso do Oriente é um passatempo divertido e competente, mas que eu provavelmente esquecerei daqui a uma semana. Não que o resultado desonre a obra de Agatha Christie, mas um pouco mais de ambição cairia muitíssimo bem aqui.