Ao escrever sobre O Cavaleiro das Trevas, classifiquei aquele “retrato denso, impactante, realista, maduro e audacioso da época em que foi realizado” como um segundo ato genial de uma história cuja apresentação havia sido feita de forma mais que adequada por Batman Begins. Aplicando a clássica estrutura de três atos – introdução, confrontação e conclusão – ao visionário trabalho cinematográfico que fez estrelando um dos mais icônicos heróis de quadrinhos, o cineasta Christopher Nolan (Following, Amnésia, Insônia, O Grande Truque e A Origem) dedica os 164 minutos de O Cavaleiro das Trevas Ressurge para finalizar de forma épica e majestosa sua visão realista e complexa de Batman. O objetivo é claro, mas embora seja bem sucedido em criar uma experiência sensorial impactante, é de se lamentar que o diretor/roteirista acabe sendo atropelado pelo desespero de se superar e entregar um desfecho espetacularmente memorável para a história que vinha conduzindo com tamanho virtuosismo. Assim, este encerramento da “batsaga” comandada por Nolan acaba funcionando mais como um evento gratificante de ser testemunhado e menos como uma obra bem sucedida em suas ambições.
Apresentando o vilão Bane logo de cara numa sequência absolutamente empolgante, mas que perde o sentido de maneira completa e ridícula assim que se conclui, este terceiro e último Batman de Christopher Nolan (co-roteirizado por seu irmão, Jonathan) traz Bruce Wayne vivendo sem aparecer publicamente oito anos após os decisivos eventos de O Cavaleiro das Trevas. Eis que surge a ladra Selina Kyle para lhe roubar suas digitais para vendê-las a entidades criminosas associadas ao temível Bane, o que imediatamente provoca o ressurgimento de Batman e a decadência financeira de Wayne ao mesmo tempo em que se revela a misteriosa, porém atraente Miranda Tate. Com tantas intervenções, Gotham se torna um verdadeiro caos nos cinco meses que precedem a tentativa de concluir o plano de Bane: detonar de uma bomba nuclear para devastar a cidade. Assim, Batman terá de se unir à Mulher-Gato para salvar Gotham custe o que custar.
Acompanhado por uma trilha incidental intensa, tocante e memorável de Hans Zimmer, O Cavaleiro das Trevas Ressurge é agraciado por um trabalho de fotografia absolutamente irresistível de Wally Pfister, responsável por definir brilhantemente o estado “espiritual” de Gotham através de colorações frias e que tendem a evocar a melancolia a partir de tons azulados. E embora o design de som peque gravemente ao abaixar o volume ambiente apenas para realçar a voz sintetizada produzida pela máscara de Bane, é preciso destacar a ótima noção de escala tanto de Nolan quanto de Pfister, comprovada numa sequência ocorrida durante o segundo ato da projeção onde múltiplas explosões ocorrem em diferentes pontos da cidade; mesmo sendo necessário dizer que a mise-en-scène acaba sendo prejudicada nas cenas de ação, onde, além dos cortes rápidos, a câmera é mantida excessivamente próxima aos personagens (mas este é o menor dos males, visto que a coreografia das lutas chega a ser absurda de precária – céus, é possível ver socos passando a centímetros de distância dos respectivos alvos e, mesmo assim, acertando-os!). Apesar dos pesares, a boa montagem de Lee Smith merece créditos por conferir agilidade a um longa que conta com uma narrativa extensa e que necessita de quase três horas para se resolver, fazendo com que a película “voe” como se durasse bem menos.
Em contrapartida, é difícil não sentir pena de Christopher Nolan por seus esforços desesperados na tentativa de realizar um filme superior a O Cavaleiro das Trevas mesmo com a ausência de Coringa. E esses esforços, infelizmente, resultam numa quantia demasiada de personagens descartáveis, situações supérfluas e conceitos filosóficos que, em vez de enriquecerem a obra, acabam inchando a narrativa e, consequentemente, sacrificando seu andamento – constatem, por exemplo, como a exclusão total de Mulher-Gato do roteiro poderia eliminar a irrelevante subtrama envolvendo o empobrecimento de Bruce Wayne sem prejuízo algum. Pra piorar, as reviravoltas ocorridas no terceiro ato da película são tão problemáticas que, na tentativa de justificar a existência da péssima personagem de Marion Cotillard, o roteiro sacrifica o que até então era uma das grandes virtudes de O Cavaleiro das Trevas Ressurge: Bane (não direi mais que isso para evitar a revelação de spoilers).
Sofrendo deste mal elaborado no último parágrafo, Nolan entrega sequências de ação e momentos épicos demasiadamente oníricos e explosivos considerando a proposta realista defendida por Batman Begins e O Cavaleiro das Trevas, e todos sustentados em conceitos filosóficos, ideais e alegorias frequentemente tolas ou infantis (a absurda e involuntariamente cômica sequência onde a polícia de Gotham decide confrontar de frente o exército de Bane é apenas um exemplo). Sim, é verdade que as alusões à crise econômica de 2008 são atraentes – embora componha a trama da falência financeira de Bruce Wayne, que, como já foi dito, nada mais é que um modo de deixar a narrativa ainda mais inchada -, mas qual o sentido do cunho “revolucionário” de Bane, um vilão cujo plano é dar esperança ao povo de Gotham destruindo a cidade? Curiosa e lamentavelmente, este sintomático excesso de personagens, situações, reviravoltas e grandiosidade é incapaz de preencher a lacuna deixada pela falta de qualquer menção ao Coringa. Ora, é compreensível a atitude da produção em não escalar um novo ator para interpretar o grande vilão do Homem-Morcego nesta franquia, mas isso não justifica a falta de qualquer referência sutil ao ícone vivido magistralmente por Heath Ledger no filme anterior – aliás, a impressão gerada é que, em vez de prestar respeito ao falecido ator, o roteiro procura esquecer que Coringa existiu naquele universo.
Como se não bastasse, enquanto Nolan falha em seus esforços criativos, é triste ver o mesmo investindo constantemente em clichês disfuncionais mesmo como ferramentas (pouco efetivas) de movimentar a narrativa e/ou desenvolver os personagens. Há o momento em que o herói decide “quitar as dívidas” com os inocentes que jurou proteger, a massiva rebelião dos atacados contra os vilões, o beijo romântico, o último sacrifício do protagonista, tudo no meio da correria do “temos alguns minutos para salvar a cidade de uma bomba nuclear… e ainda assim houve tempo para fazer um imenso ‘morcego de fogo’ numa ponte como símbolo de esperança para a população” (ah, façam-me o favor!). Mesmo havendo diálogos pontualmente dolorosos (“Você é o puro mal!“), poucas coisas são tão decepcionantes quanto os absurdos furos de roteiro e resoluções ilógicas para situações que já não eram lá muito fáceis de admitir – e, a partir daqui, haverá SPOILERS de O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Por que Alfred permitiu que Selina Kyle fosse a única a se dirigir sozinha aos aposentos do recluso Bruce Wayne? Ah, sim, porque o roteiro precisa que os dois se encontrem, é claro. O joelho do herói voltou a ser perfeitamente funcional por causa de uma estrutura mecânica? Sério? Claro que fatalmente algum funcionário da Wayne Enterprises poderia descobrir a identidade secreta do herói por estar próximo de sua fonte “semi-armamentista”, mas… um indivíduo comum reconhecendo o homem por traz da máscara de Batman apenas por causa do desenho de sua boca? Ah, parem! Como diabos Bruce Wayne saiu de um deserto distante e retornou a uma cidade fortemente vigiada e protegida de ação exterior? E por favor, alguém me diga como a coluna do protagonista pode ter sido restaurada com um soco?!
Por outro lado, O Cavaleiro das Trevas Ressurge conta com atributos suficientes para contentar ou ao menos evitar a reprovação, sendo o maior deles o excelente trabalho de Christopher e Jonathan Nolan na composição dos personagens (até certo ponto, em determinados casos) complementado pela ótima escalação de elenco. Sim, é verdade que o cineasta segue incapaz de acertar em papeis femininos: a Mulher-Gato de Anne Hathaway pode até ser razoavelmente interessante, mas pouco tem a oferecer enquanto Marion Cotillard surge absolutamente desastrosa, fazendo uso de caretas tão incessantes quanto constrangedoras para compor (leia-se: piorar) uma personagem que já soava equivocada no roteiro. Contudo, Christian Bale segue digno de palmas ao idealizar um Bruce Wayne/Batman vulnerável e cheio de nuances, alternando entre a virilidade e o pesar com a mesma competência com a qual humaniza o herói – e o fato de seguir usando sua voz gutural quando assume a figura do Cavaleiro das Trevas e dialoga com pessoas que conhecem sua identidade secreta ou mesmo sozinho serve como um indício absolutamente fenomenal de que o Batman também é útil para exorcizar os demônios pessoais de Wayne.
Por sua vez, Bane se apresenta um contraponto instigante do protagonista (algo que se reflete até mesmo no desenho de sua máscara: o herói cobre seus olhos enquanto deixa a boca exposta, ao passo que o vilão cobre a boca enquanto deixa os olhos expostos) e conta com uma presença incrivelmente impactante graças à sua imponência física, algo que o sempre formidável Tom Hardy potencializa através de maneirismos sutis como o hábito de manter as mãos constantemente fixadas na parte superior do colete. Para complementar, a intensidade do olhar e da voz de Bane e são cruciais em sua concepção ameaçadora e imponente, o que novamente garante elogios ao trabalho enérgico de Hardy. Para concluir, Morgan Freeman retorna bastante apropriado na pele de Lucius Fox – e nesta altura do campeonato, depois de três filmes, o personagem já ganhou o apreço do público – e Joseph Gordon-Levitt atende às necessidades do papel encarado de maneira funcional, mas é mesmo Gary Oldman e Michael Caine os mais relevantes e intrigantes dos coadjuvantes: enquanto Alfred é vivido com pureza e imensa carga dramática, convencendo como uma figura paterna relevante e estrelando dois momentos genuinamente comoventes, o comissário James Gordon contrapõe a sabedoria do mordomo de Bruce Wayne ao se mostrar sempre abalado pelo passado trágico (visto e sentido no final de O Cavaleiro das Trevas) e assombrado pelos erros que fora obrigado a cometer.
No fim das contas, não há como negar que O Cavaleiro das Trevas Ressurge é um desfecho desapontador e inapropriado para uma história cujo caminho era trilhado brilhantemente até então. Apesar dos pesares, a terceira experiência de Christopher Nolan com o Homem-Morcego ainda rende seus bons momentos e a empolgação eventual gerada supera moderadamente a má impressão deixada pelas numerosas e graves falhas, transformando o capítulo final da trilogia num passatempo suficientemente divertido. Só é uma pena, no entanto, que Batman Begins e O Cavaleiro das Trevas tenham estabelecido um padrão muito além disso.