A primeira vez em que tive contato com a obra de Juliana Rojas foi em 2018, quando conferi As Boas Maneiras – e o resultado me encantou de tal forma que não hesitei em colocar aquele filme na minha lista dos melhores daquele ano. Criando uma narrativa que lidava com conceitos fabulescos de modo sempre imaginativo, o longa dirigido por Rojas e por Marco Dutra (por sua vez, responsável por O Silêncio do Céu e que já tinha trabalhado com Rojas em Trabalhar Cansa) conseguia empregar muitíssimo bem seus elementos de fantasia como forma de fortalecer ainda mais os comentários sobre desigualdade social e exploração do proletariado que, afinal, já existiam nos trabalhos anteriores da cineasta: Sinfonia da Necrópole e Trabalhar Cansa. O que nos traz a Cidade; Campo, que, felizmente, indica que Rojas segue uma diretora eficaz nos terrenos (em especial, temáticos) que percorre.
Escrito e dirigido por Juliana Rojas, Cidade; Campo é um exercício curioso que compara, através de duas histórias, os diferentes sentidos de um fluxo migratório específico: na primeira metade da obra, acompanhamos Joana, uma trabalhadora rural que se muda para São Paulo após sua terra natal ser devastada por uma inundação decorrente do rompimento de uma barragem; na segunda, voltamos nossas atenções para Flávia, uma jovem que, acompanhada de sua namorada Mara, parte para a fazenda que herdou de seu pai, falecido recentemente. Assim, se na primeira história assistimos à luta de uma mulher que enfrenta as implicações do trajeto campo-cidade, na segunda vemos uma inversão da ordem dos fatores, com um casal fazendo o percurso cidade-campo.
Ancorada por uma performance central fabulosa de Fernanda Vianna, que encarna bem as dores, as hesitações, a indignação crescente e as pequenas alegrias/satisfações de Joana, a primeira metade de Cidade; Campo é, também, a sua melhor, já que é nesta história que Juliana Rojas melhor consegue equilibrar os aspectos dramáticos do arco de sua protagonista e, ao mesmo tempo, os comentários sociais que naturalmente constrói só por mostrar o dia-a-dia daquela personagem – e estes funcionam por se apresentarem 1) de forma orgânica, sem precisarem interromper a narrativa para se articularem, e 2) de maneiras sutis, que complementam os entornos da história de Joana em vez de se descolarem desta. Com isso, se o fato de a protagonista ser praticamente uma refugiada climática já constitui um subtexto que fala por si só, a inserção de Joana no mercado das empregadas domésticas ressalta algo que vem se tornando cada vez mais alarmante nos últimos anos: a uberização dos serviços gerais através de aplicativos que, na prática, atuam apenas como forma de se precarizar ainda mais a vida do trabalhador comum, já que este, enganado pela farsa de ser “autônomo” (adicione a isso palavrinhas mágicas como “empreendedorismo” e por aí vai), tem suas energias totalmente sugadas por uma empresa sem ser amparado por direito trabalhista algum.
Porém, é difícil disfarçar a sensação de que a segunda história (ou seja: a segunda metade de Cidade; Campo) é um pouco menos interessante do que a primeira – ainda que conte com duas interpretações soberbas de Mirella Façanha e Bruna Linzmeyer, que expressam com absoluta convicção o apego que têm por suas origens/terras natais, mas ao mesmo tempo o amor que sentem uma pela outra (um amor que, por sinal, culmina em uma cena de sexo que se encontra, desde já, entre os momentos mais memoráveis do ano, já que Juliana Rojas retrata aquela relação com ternura e delicadeza absolutas e constrói a sensação de paixão, nutrida entre o casal, através de planos-detalhe que demonstra como o carinho de Flávia e Mara se encontra em seus pequenos gestos/toques).
O problema é que, se na história de Joana a cineasta é bem-sucedida ao criar uma atmosfera de melancolia constante através do deslocamento da protagonista em relação ao espaço que a cerca (com todos aqueles momentos que a trazem somente sentindo o ar da cidade grande, refletindo sobre o passado/origem que perdeu), a narrativa de Flávia até consegue evocar o conflito interno da moça em perceber aquele ambiente como relíquia de um passado que já se foi – mas sempre que Rojas decide entrar num território mais “místico” (em especial, com as experiências das personagens provocadas por ayahuasca), os resultados soam breves demais para conseguirem gerar uma sensação, para o espectador, que faça jus às alucinações/transformações de Flávia e Mara. Assim, essas inserções acabam parecendo… gratuitas, deslocadas do todo.
De todo modo, Cidade; Campo é um filme que funciona sempre que se concentra nos toques, detalhes e respiros mais íntimos de suas personagens, refletindo, com isso, uma sensação de “falta de pertencimento” que, de um ponto de vista sensorial, torna o longa (quase) sempre eficiente. Em outras palavras: ainda não foi desta vez que Juliana Rojas desapontou.