Cine Marrocos (1)

Título Original

Cine Marrocos

Lançamento

3 de junho de 2021

Direção

Ricardo Calil

Roteiro

Ricardo Calil

Elenco

Ricardo Calil, Ivo Müller, Georgina Castro, Fagner Oliveira e Tatiane Oliveira

Duração

76 minutos

Gênero

Nacionalidade

Brasil

Produção

Eliane Ferreira e Pablo Iraola

Distribuidor

Bretz Filmes

Sinopse

Em Cine Marrocos, acompanhamos a história de sem-tetos, refugiados africanos e imigrantes latino-americanos que ocuparam o prédio de um antigo cinema do centro de São Paulo e o processo artístico que os transformou em estrelas de cinema.

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Cine Marrocos | Crítica

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Num país com mais da metade da população sem ter sequer garantia de comida na mesa e com mais de 33 milhões de pessoas sem terem onde morar (e com mais de 6 milhões de imóveis vazios, prontos para serem ocupados, mas restringidos por alguma cláusula ou ordem judicial), chamar as famílias e os trabalhadores que se juntam em movimentos como MST e MTST, a fim de reivindicar o básico (comida e moradia), de “vagabundos” e/ou “terroristas” (como costuma fazer o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores igualmente canalhas) é um ato imoral. E mais: quando passamos a olhar para pessoas (famílias inteiras!) morrendo de fome nas calçadas e sem sentirmos nada além da indiferença, como se elas apenas fizessem parte de nosso cenário, é porque o processo de banalização da desigualdade (patrocinado por uma elite econômica interessada em se manter no topo às custas de quem está na superfície e em nos fazer acreditar que “não há solução para a miséria” – porque, assim, pararemos de procurá-la) foi completado.

É por isso que, num Brasil como este no qual vivemos, um documentário como Cine Marrocos assume um papel fundamental ao nos lembrar de algo que deveria ser óbvio, mas que, graças à apatia da sociedade (bancada, de novo, pela elite), há muito deixou de ser: os indivíduos que ocupam um prédio abandonado e que sobrevivem através de caridades (ou do pouco pelo que conseguem pagar) são seres humanos com sentimentos, desejos, memórias, dores e histórias reais – e o simples fato de sobreviverem já é fruto de um esforço árduo que torna impossível chamá-los de “vagabundos”. Dirigido por Ricardo Calil (Uma Noite em 67, Eu Sou Carlos Imperial, Narciso em Férias), o filme gira em torno das mais de cem famílias que compunham o MSTS (Movimento dos Sem Terra de São Paulo) e que durante anos ocuparam o antigo prédio do Cine Marrocos, abandonado pela prefeitura desde a década de 1970 – o que, porém, não a impediu de entrar numa ação judicial para expulsar os sem-teto de lá.

Já abrindo a projeção com um dos moradores recitando o versículo bíblico de Jeremias 17:5, que diz “Não confiem em mim, pois maldito é o homem que confia em outro homem”, Cine Marrocos revela-se curioso ao usar estas palavras para pautar toda a lógica da narrativa que constrói, não sendo à toa que, em vários momentos, vemos os personagens não só falando sobre os filmes que há muito foram exibidos naquele cinema (como parte de festivais internacionais, inclusive), como também reencenando passagens memoráveis deles. Ao adotar esta estratégia, o documentário acaba absorvendo a mística do cenário-título e refletindo-a narrativamente: no mundo real, o Cine Marrocos antes era um espaço para uma elite intelectual e depois se tornou o abrigo de um grupo marginalizado pela Sociedade; aqui, os filmes exibidos para aquela elite intelectual passam a ser apropriados e reinterpretados por aquele mesmo grupo marginalizado.

Além disso, os motivos que levam os personagens a aceitarem atuar na recriação daquelas cenas variam de acordo com cada um deles, o que, por consequência, revela um pouco sobre suas respectivas personalidades: uns sobem ao palco querendo escapismo, interpretar pessoas que nada têm a ver com eles; outros, no entanto, o fazem justamente para interpretar papeis que tenham a ver com eles, que reflitam suas dores próprias e reais. E é a partir daí – e das demais entrevistas – que Cine Marrocos começa a pintar os integrantes do MSTS como aquilo que são: pessoas inteligentes, de extrema perseverança que labutam para manter-se de pé e que colecionam personalidades e experiências de vida surpreendentes (e é revelador que, em dado momento, quando um dos moradores atua sob o palco e faz uma pausa dramática que se prolonga além do esperado, um dos responsáveis pela produção supõe que ele havia esquecido sua fala e começa a recitá-la em voz alta, falhando em constatar, portanto, o domínio que o indivíduo tinha sobre dramaturgia e confundindo sua escolha de performance com mero esquecimento).

Mas não é só: durante toda a primeira metade de Cine Marrocos, somos apresentados a cidadãos e cidadãs que, mesmo dividindo teto e causa, vieram das mais variadas origens e lugares, desde refugiados de países da África até o filho de um corretor de imóveis que alega ter saído de casa justamente por acreditar ter nascido “com muito mais do que precisava para viver”. (E gosto particularmente do humor de uma moradora que, ao ser convocada para um papel que envolve um beijo lésbico – e perguntada se ela teria algum problema em fazê-lo, responde “Eu já tive essa fase hetero; superei”.) Da mesma forma, o fato de vários dos moradores entrevistados por Calil relatarem a morte do pai ou da mãe como uma memória tocante (o de um ficou internado por nove meses até morrer; o de outro foi vítima de um derrame; o de um refugiado foi envenenado pelo governo do Congo enquanto discursava num microfone) acaba revelando a constância de um trauma comum (a perda da figura paterna/materna), o que ajuda a humanizar mais ainda aqueles personagens.

Ainda assim, mesmo com suas dores e suas vulnerabilidades, a característica dos ocupantes do Cine Marrocos que mais salta aos olhos é sempre sua força e sua resiliência – e, neste sentido, o documentário formaria uma ótima sessão dupla com o excepcional Era o Hotel Cambridge, que também girava em torno de trabalhadores e trabalhadoras que buscavam moradia em um prédio abandonado em São Paulo. E, como bem lembra Vladimir (um dos líderes do movimento), “quem paga a manutenção, os funcionários, os contadores, o departamento jurídico do MSTS, os contratos de mensalidade dos elevadores, a gasolina, a cesta básica, etc, são os moradores”, deixando claro de uma vez por todas que “vagabundos”, aqueles indivíduos não são.

Não que Vladimir seja o maior exemplo dentre os integrantes do MSTS – e um dos poucos tropeços do longa reside em não explorar a fundo o ideário político por trás do movimento, já que, em dado momento, este mesmo líder alega que as “vergonhas” do PT o fizeram afastar-se do partido e que hoje pede, nas reuniões da ocupação, para os moradores votarem nos mesmos PSDB, Aécio Neves, Geraldo Alckmin e afins que ajudam a mantê-los naquela situação e que não deixam escapar uma única oportunidade de colocar a polícia para despejá-los ou massacrá-los.

O que culmina, é claro, no desfecho de Cine Marrocos (filme e ocupação), que claramente pegou de surpreendeu tanto o público quanto a equipe que rodava o documentário e que, de forma triste e inesperada, acaba gerando mais uma rima com Jeremias 17:5 ao colocar em dúvida a confiança que tínhamos criado por aquele “outro homem”.

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