Contar a História dos Estados Unidos é contar a História do racismo nos Estados Unidos: a base da colonização inglesa na América do Norte, afinal, se deu através da escravidão, resultando (se somarmos o período das Treze Colônias ao pós-independência) em quase 300 anos de violência, genocídio e trabalhos forçados aos africanos sequestrados de sua terra – e, por mais que os grilhões tenham sido oficialmente abolidos em 1865, a comunidade negra dos Estados Unidos não deixou de ser marginalizada pela sociedade, perseguida por grupos supremacistas, executada pela polícia que deveria defendê-la e encarcerada em prisões cada vez mais sobrecarregadas. No entanto, como disse Malcolm X num de seus discursos: “O negro está aqui há mais tempo que a América (…) quando não tiver mais América, o negro ainda estará aqui” – o mesmo Malcolm X que teve sua vida brilhantemente retratada em 1992 por aquele que é, sem dúvida, um dos cineastas que melhor compreendem a estrutura racista do país (e do mundo) ao seu redor e como usar a linguagem cinematográfica para denunciá-la: Spike Lee.
Ao longo de mais de 30 anos de carreira, Lee se transformou em uma das principais vozes da representação negra em Hollywood – e, se isto aconteceu, é porque, além de profundo conhecedor de sua causa, da cultura negra e das raízes que tornaram o racismo endêmico nos Estados Unidos (e no mundo), Lee é também um entendedor nato de linguagem cinematográfica, sabendo empregá-la como arma política (um dos maiores absurdos da história do Oscar, aliás, é o fato de seu excepcional Faça a Coisa Certa nem ter sido indicado a Melhor Filme no ano em que Conduzindo Miss Daisy ganhou o prêmio principal). E é um alívio, portanto, que seu mais novo longa faça jus à sua brilhante carreira: escrito por Danny Bilson e Paul De Meo e reescrito por Lee e Kevin Willmott (repetindo a parceria que fizeram em Infiltrado na Klan), este Destacamento Blood gira em torno de quatro veteranos negros que lutaram na guerra do Vietnã e que, apelidados de “Bloods”, retornam ao país para reencontrar os restos mortais de seu “mentor”, o comandante Norman Holloway, e um conjunto de barras de ouro que prometeram dedicar a ONGs que lutem pelos direitos civis dos negros.
Quem é familiarizado com o Cinema de Spike Lee já deve imaginar, é claro, que esta premissa será utilizada pelo cineasta como uma forma de retratar a sociedade norte-americana e o racismo que nela permeia, encarando toda a missão dos personagens em busca das barras de ouro como uma tentativa de reajuste histórico isolado e em microescala – afinal, se as riquezas dos Estados Unidos foram construídas a partir do suor, sangue e sofrimento de escravos, ao menos desta vez a comunidade negra (representada pelos “Bloods”) terá direito aos bens materiais que encontrou por conta própria, contrapondo-se a uma injustiça secular. (É claro que devem haver muitos outros detalhes narrativos que refletem questões-chave importantíssimas da História negra nos Estados Unidos – no entanto, como o branco que sei que sou, prefiro reconhecer minha incapacidade de detectar estes detalhes.) Neste sentido, a figura de Norman Holloway torna-se uma fonte de inspiração caríssima aos “Bloods”, sendo descrita por estes como “o responsável por ensinar-lhes o que era ser negro”, como “nosso Malcolm, nosso Martin”.
Não menos importante é observar como o simples fato de terem lutado no Vietnã (numa guerra historicamente conhecida como uma das mais sujas e imorais da História “recente” dos Estados Unidos) impacta os personagens de maneiras distintas – não à toa, os “Bloods” (e os negros em geral) eram colocados na dianteira das tropas norte-americanas, recebendo os tiros primeiro sem serem reconhecidos por isto e sem terem relação direta com a luta em si (como um dos personagens afirma em certo momento, eles lutaram “uma guerra que não era deles”). Aliás, Lee mostra-se especialmente inspirado ao criar uma personagem que, radialista vietnamita, surge de vez em quando através de monólogos que não apenas relembram a participação dos negros na guerra, como também a questionam, ao passo que o próprio Norman, como a figura messiânica que acaba se tornando, é enxergado por cada um dos “Bloods” de formas diferentes – e é revelador que um deles (o mais oportunista do grupo) ressignifique os ideais do mentor em busca não de uma compreensão melhor acerca destes, mas de uma emancipação própria.
O que nos traz àquilo que mais me atraiu em Destacamento Blood: sua complexidade ao lidar com seus temas e ao desenvolver alguns de seus personagens. A princípio, seria muito fácil retratar os “Bloods” como mocinhos esclarecidos e que prezam por uma causa em comum; mais desafiador seria conferir tons de cinza a estes personagens. No entanto, Spike Lee nunca foi um diretor particularmente maniqueísta (basta pensar nas disputas entre gangues de Faça a Coisa Certa, nas divergências internas que levaram ao trágico destino de Malcolm X ou mesmo no fato de haver um negro entre policiais racistas em Infiltrado na Klan), sendo notável, portanto, que um dos personagens centrais do filme seja Paul, um sujeito que desde o princípio se declara trumpista, nacionalista e apegado a práticas ultraconservadoras – o que não deixa de ser fascinante, considerando que seu filho, ao conversar com outra personagem, lembra que “os negros foram minoria entre os que votaram em Trump”. Se somarmos isto ao tom raivoso de praticamente todas as suas falas, Paul torna-se um exemplo de como até mesmo os maiores alvos dos ataques de canalhas como Donald Trump e Jair Bolsonaro podem ser engolidos por suas políticas de ódio.
Não que Lee seja sutil ao retratar Paul como uma figura execrável: seu egoísmo, por exemplo, o posiciona como o único do grupo a não querer usar sua parte do ouro em prol de uma causa nobre (sendo levado a uma obsessão em função disso), ao passo que o desprezo que sente pelo próprio filho nem tenta ser escondido ou mesmo disfarçado por ele – e, se o boné escrito “Make America Great Again” pode soar tolo e caricato de primeira, aos poucos estabelece um contraste curioso ao fato óbvio de estar na cabeça de alguém que certamente seria alvo de ataques por parte do mesmo Trump que apoia. Além disso, a excelente performance de Delroy Lindo mostra-se fundamental não apenas ao estabelecer o temperamento odioso de Paul, mas também seu desespero (chegando ao auge no longo monólogo – sem cortes – no qual rompe a “quarta parede” e praticamente implora para que o espectador se mantenha do seu lado). Enquanto isso, se os demais “Bloods” acabam subdesenvolvidos (o que é uma pena), o vilão interpretado por Jean Reno se revela um completo ignorante em relação a causas sociais, sendo sintomático que, ao se referir a um negro, afirme que “A cor da pele não eleva o sacrifício”.
Mas um cineasta como Spike Lee se preocupa não só com os temas de seus filmes, mas também com a forma de mostrá-los em cena, encarando, em especial, a montagem como uma ferramenta eficaz de desconstrução de velhos discursos (a montagem paralela de Infiltrado na Klan que alterna entre uma sessão fechada de O Nascimento de uma Nação para os membros da Ku Klux Klan e uma reunião dos estudantes negros do Colorado com o ativista Jerome Turner, por exemplo, representa um dos melhores momentos da carreira de Lee). Dito isso, Destacamento Blood traz de volta a maioria das assinaturas estilísticas de seu diretor, desde o uso pontual de imagens de arquivo verídicas (importantes ao ancorar a narrativa no mundo real) até os grafismos que ocasionalmente pulam na tela (um pôster aqui, uma foto ali, etc). Por outro lado, chega um momento – por volta da metade da projeção – em que o filme se torna mais convencional, como se Lee e o montador Adam Gough tivessem se esquecido da identidade visual que vinham mantendo até então (sim, isto é um problema).
Brincando com a linguagem ao alternar entre razões de aspecto fechadas e abertas à medida que saltamos do presente aos flashbacks que enfocam a guerra no Vietnã (um recurso interessante a princípio, mas que começa a soar como mera distração depois de um tempo), Destacamento Blood ainda assim é uma obra potente, ambiciosa ao desenvolver seus personagens e madura ao discutir seus temas – e é espantoso que haja, nos minutos finais da projeção, uma cena que traz vários personagens brandindo “Black Lives Matter” e que faz todo o sentido do ponto de vista narrativo, já que é esperado que, depois da aventura que viveram, os “Bloods” investiriam o tesouro que acharam em uma forma prática de manter sua causa de pé.
Que Destacamento Blood tenha sido lançado em meio à maior onda de protestos pelos direitos negros que os Estados Unidos testemunharam nos últimos 50 anos, em memória de George Floyd (covardemente executado pela polícia de Minneapolis), é uma daquelas coincidências do destino que nunca seremos capazes de compreender, mas que acabam enriquecendo ainda mais o filme em si.
Assista também ao vídeo sobre Destacamento Blood:
2 Comentários
Bacana a interpretação.
Não gostei desse filme, mas reconheço seu valor.
Obrigado, Roberto! <3