Pedro Almodóvar é um cineasta com um currículo invejável – e, para entender isso, basta dar uma breve olhada na lista de filmes que ele dirigiu da metade dos anos 1980 para cá: Matador, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, Ata-me!, Tudo Sobre Minha Mãe, Fale com Ela, Má Educação, Volver, A Pele que Habito… isso porque estou citando apenas os mais óbvios. Sim, é verdade que, nos últimos dez anos, Almodóvar andou cometendo alguns tropeços (Os Amantes Passageiros, por exemplo), mas nada que diminua seus vários acertos. E é natural que, aos 69 anos de idade (quase um septuagenário), o diretor esteja começando a analisar sua carreira em retrospecto – o que nos traz a este Dor e Glória, que, mesmo sem se declarar como autobiografia, soa como uma espécie de “terapia” na qual Almodóvar discute seu papel como indivíduo e, acima de tudo, como realizador.
Estabelecendo-se como um legítimo estudo de personagem (a trama em si nem é o elemento que mais interessa ao roteiro), Dor e Glória acompanha o dia a dia de Salvador Mallo, um diretor de Cinema que fez bastante sucesso no passado, mas que agora parece ter sido esquecido pela indústria e vive relembrando os trabalhos que dirigiu nos melhores anos de sua carreira. Tudo começa a mudar depois que a Cinemateca espanhola resolve restaurar um de seus primeiros longas e exibi-lo para o grande público, convidando Mallo para apresentar uma sessão de perguntas e respostas ao lado do ator Alberto Crespo, com quem está brigado desde o lançamento do filme. A partir daí, o cineasta embarca em uma série de reflexões a respeito de sua obra e de memórias que o levam de volta à sua infância, no interior da Espanha.
Alcançando um equilíbrio perfeito entre a delicadeza e a comédia irreverente, Almodóvar se sai bem ao criar momentos pontuais de bom humor sem permitir que estes comprometam o peso dramático exigido por algumas passagens mais graves – e por mais que o fato de Salvador Mallo ser viciado em heroína renda alguns momentos engraçados, isto não diminui o perigo que o vício em si certamente representa para o protagonista. Além disso, a própria reflexão de Mallo acerca de sua obra é ilustrada pelo filme de maneira suficientemente madura: há três anos sem apresentar um novo trabalho, o cineasta enfrenta aqui o famoso “bloqueio criativo”, sentindo-se perdido e desestimulado apesar de todo o prestígio que recebeu ao longo de sua carreira. Mas o mais interessante é perceber como o tempo pode afetar a percepção de Mallo acerca de seus projetos: quando terminou o tal filme com Alberto Crespo, o diretor detestou o resultado final; ao revisitar o longa depois de muitos anos, no entanto, ele passou a gostar do que havia criado.
O que mudou de lá para cá? Será que Mallo amadureceu como profissional e, agora, tornou-se capaz de admirar algo que rejeitava quando era menos experiente? Para entender isso, Dor e Glória faz um importante mergulho nas memórias do protagonista – e, a partir daí, o filme começa a soar mais autobiográfico: sempre fotografadas por José Luis Alcaine (que trabalhou com Almodóvar em Má Educação, Volver e A Pele que Habito) a partir de cores quentes e nostálgicas, as sequências que enfocam a infância de Salvador ajudam o espectador a compreender diversos detalhes sutis que, mais tarde, se tornariam fundamentais para o desenvolvimento do lado artístico do protagonista, como seu interesse por leitura, por imagens e por cores em geral. Aliás, a interação entre o pequeno Salvador e o pedreiro Federico também desempenha uma função importante, pois sugere (e, de certa forma, define) boa parte dos prazeres que o protagonista viria a sentir quando chegasse à vida adulta.
Mas é impossível discutir Dor e Glória sem comentar a bela performance de Antonio Banderas: encarnando Salvador Mallo como um homem calejado, mergulhado em um oceano de inseguranças e abatido pelas dores (físicas e emocionais) que sente em função de vários problemas crônicos, Banderas é bem-sucedido ao transformar o protagonista em um artista que há muito parece ter perdido o impulso de produzir a Arte em si, como se a estagnação criativa fosse um mal incapaz de ser combatido. Por outro lado, à medida que Mallo vai se reaproximando de Alberto Crespo, ele começa a passar por uma série de reflexões que, para o bem ou para o mal, o levam a uma nova etapa em sua jornada – e Banderas se sai bem ao retratar a evolução do personagem, que começa tomado pela amargura, mas que aos poucos descobre uma pequena (e surpreendente) chama de esperança.
No fim das contas, a obra de Salvador Mallo nada mais é do que um reflexo de suas experiências de vida – e eu não ficaria surpreso se descobrisse que Dor e Glória também é um reflexo daquilo que o próprio Almodóvar viveu. Afinal, o bom da Arte é que ela permite que o artista expresse seus sentimentos e, ao mesmo tempo, deixe um espaço para que o público tire suas conclusões.