A esta altura do campeonato, já não é mais mistério para ninguém que Stephen King detestou a adaptação de O Iluminado que Stanley Kubrick comandou em 1980 – tanto que, em 1997, ele chegou a produzir e a escrever uma minissérie para a TV que contava a história do jeitinho que queria. Aparentemente descartando boa parte dos elementos presentes na obra original, Kubrick criou um filme que, querendo ou não, se estabeleceu como um clássico inquestionável, repleto de passagens que se tornaram célebres a ponto de ainda hoje serem referenciadas por diversas produções contemporâneas (como ignorar, por exemplo, a assustadora performance de Jack Nicholson e seu inesquecível “Here’s Johnny!“?). Aliás, a insatisfação de King pelo trabalho de Kubrick é tão grande que, em 2013, ele se encarregou de escrever Doutor Sono, uma continuação de O Iluminado concebida como uma resposta sacana à adaptação de 1980 – e que, agora, é transformada em filme pelo diretor Mike Flanagan.
Se Doutor Sono funciona como adaptação, eu honestamente não sei dizer, pois não li o livro homônimo de Stephen King. O que posso dizer, no entanto, é que se trata de um esforço que já seria medíocre o bastante como Cinema caso não tivesse o longa de Stanley Kubrick para servir de comparação, tornando-se ainda mais embaraçoso quando encarado como sequência daquela obra.
Roteirizado também por Flanagan, Doutor Sono volta a se concentrar em Danny Torrance mais de 30 anos depois dos eventos retratados em O Iluminado – e, se antes ele era um menininho que tinha que lidar com o pai perturbado pelos espíritos do Hotel Overlook, agora ele é um adulto que segue traumatizando pelos horrores que presenciou na infância, o que eventualmente o leva ao álcool, às drogas e a uma vida inconsequente, como se enxergasse estes três elementos como uma válvula de escape. Depois de entrar em uma clínica de reabilitação que aos poucos o liberta de suas dependências químicas, Danny tem cada vez mais consciência de que não é o único “iluminado” do mundo, descobrindo as ações perversas de uma seita liderada pela terrível Rose the Hat e o interesse crescente que esta demonstra pela garotinha Abra, talvez a mais forte e promissora das “iluminadas”.
Como podem perceber, Doutor Sono não economiza no absurdo de suas ideias, apresentando uma série de conceitos infantis e criando sequências inteiras que se tornam hilárias de tão estúpidas, como se tivessem sido planejadas por uma criança que acabou de assistir a O Iluminado e quis brincar de continuá-lo mesmo sem ter absorvido a lógica de seu universo diegético. Aliás, não duvido que muitas destas ideias funcionassem no livro de Stephen King – o problema, porém, é que elas simplesmente não condizem com a atmosfera lúgubre e sisuda que Kubrick concebeu em 1980, soando tolas e dispensáveis no processo em consideração aqui. Por outro lado, sempre que o filme revela uma ideia mais promissora, esta é subaproveitada de maneira decepcionante: quando Danny começa a se converter no “Doutor Sono” descrito no título, preparando os pacientes de um hospital para a morte que lhes acometerá nos próximos minutos, o roteiro de Mike Flanagan rapidamente abandona a situação, deixando de desenvolvê-la de forma satisfatória.
Já como diretor, Flanagan também não tem muita sorte – e embora venha se destacando como um nome forte do Terror nos últimos anos (são dele os elogiados O Espelho, Hush: A Morte Ouve, Jogo Perigoso e Ouija: Origem do Mal), seu trabalho em Doutor Sono se revela, no mínimo, irregular: aqui e ali, há uma passagem que surpreende em sua execução (e gosto particularmente da cena em que Abra enfim se “conecta” ao corpo de Rose the Hat, retratando bem o choque de ambas as personagens diante de uma descoberta em comum); ainda assim, o restante da projeção se resume a um exercício de pura autoindulgência, já que Flanagan insiste em esticar a duração de praticamente todas as cenas do filme como se isto sugerisse uma construção de suspense bem planejada, confundindo “elaboração de tensão” com “tédio absoluto”. (Inclusive, dizer que Doutor Sono é um filme que induz o espectador ao sono é uma piadinha que já nasceu pré-pronta, não é mesmo?)
Mas quando parece que a decepção já foi completada, vem o terceiro ato. Apelando para a nostalgia do público sem nenhuma parcimônia (numa tentativa desesperada de usar sua memória afetiva para fazê-lo sair feliz do cinema), o ato final de Doutor Sono se resume a uma brincadeira boba e inofensiva chamada “Vamos brincar de O Iluminado” – uma brincadeira da qual Flanagan participa da forma mais aborrecida possível. Assim, confesso que senti um leve constrangimento quando vi alguns momentos icônicos do filme anterior serem recriados aqui (as tomadas aéreas que nos conduziam ao Hotel Overlook; a inundação de sangue vindo de um elevador; o retorno de personagens conhecidos), pois todos pareciam existir com um propósito artificial. E a prova definitiva do desespero do terceiro ato surge no instante em que alguém é obrigado a surtar enquanto segura um machado – afinal, um filme só pode pertencer ao universo de O Iluminado se tiver alguém surtando enquanto segura um machado.
Ainda assim, Doutor Sono conta com um elenco que, embora submetido a papeis ingratos, faz o possível para elevá-los: Ewan McGregor se sai razoavelmente bem ao encarnar os estados de espírito (com o perdão do trocadilho) diferentes de Danny Torrance, que, agora um adulto traumatizado pelos horrores que viveu quando criança, vai percebendo aos poucos o quanto precisa enfrentar sua amargura interior – e é divertido que McGregor raramente expresse choque diante de certos acontecimentos sobrenaturais, encarando-os com a naturalidade de alguém que passou a vida inteira tendo que lidar com espíritos e/ou assombrações. Por outro lado, se Kyliegh Curran retrata Abra exatamente como o que ela é – uma garota prodígio –, Rebecca Ferguson é forçada a interpretar Rose the Hat como uma vilã de desenho animado, soando ridícula dentro da lógica daquele universo particular.
Aliás, notem que Rose the Hat representa basicamente um estereótipo da moça hippie que lidera um movimento criminoso, que vive numa floresta longe da concentração urbana, que dedica seus atos criminosos à necessidade de trocar uma fumacinha especial com seus comparsas e que, em dado momento, aparece assoprando um jatinho de fumaça na boca de uma parceira quase como se a estivesse beijando, numa possível alusão à ideia de “amor livre”.
Bom, considerando todas as frustrações acumuladas no decorrer da projeção, creio que ser careta seria o menor dos problemas de Doutor Sono.