A ideia de que um filme é ruim por ser “pouco original” sempre me pareceu limitada. É aquela velha história: o que importa em uma obra não é se sua premissa é “clichê” ou “previsível”, mas como seus realizadores a abordarão de modo a torná-la única, singular – o que acaba sendo uma outra forma de repetir que a hipótese de que “o roteiro é a alma do filme” não se aplica na prática e que quem insiste em pregá-la está completamente equivocado (por razões que já discuti em outras ocasiões). Se sentimos que a falta de frescor de uma obra nos incomoda, é menos por sua premissa ser “batida” e mais pelos realizadores lidarem com os aspectos dramáticos/narrativos do roteiro que têm em mãos de forma esquemática e genérica, falhando em conferir vitalidade ou imaginação a uma trama que, por mais corriqueira que parecesse, sempre poderia ganhar contornos novos e particulares.
Que é o caso de Encanto.
Mais nova produção da “nova renascença” das animações da Disney (período que já inclui Enrolados, Frozen, Detona Ralph, Operação Big Hero, Zootopia, Moana e Raya e o Último Dragão), Encanto nos apresenta à fantástica família Madrigal, que vive reclusa em uma terra mágica batizada de Encanto e localizada entre as montanhas da Colômbia. Abençoados pelos poderes da vela mística da avó Alma, os Madrigal recebem, com isso, habilidades especiais para cada um: Julieta tem o dom de curar os outros com as comidas que prepara; Dolores tem audição sobre-humana; Luisa é superforte; Antonio é transmorfo; Camilo se comunica com animais; Isabela é capaz de fazer surgir magicamente um oceano de flores que enfeitam os ambientes pelos quais passa; etc. O que nos traz a Mirabel, filha mais nova de Julieta e única integrante da família Madrigal a não possuir nenhuma especialidade mágica – o que desperta nela a necessidade de compensar sua falta de poderes mostrando-se útil para o que der e vier. Porém, tudo muda depois que Mirabel decide desvendar o segredo acerca de Bruno, membro dos Madrigal capaz de visualizar o futuro e que há muito desapareceu por algum motivo misterioso, mas sombrio (“Não falamos sobre Bruno”, reiteram todos os personagens).
Em outras palavras: a premissa de Encanto pode não ser das mais originais, de fato, mas ao menos conta com um ou outro detalhe específico que sugere uma ambição particular, sendo particularmente notável que o roteiro de Charise Castro Smith e do co-diretor Jared Bush empregue o conceito fabulesco dos personagens a fim de criar uma história que gira em torno não de vilões ou de ações espetaculares, mas de… desavenças familiares e personagens (Mirabel e Bruno) que se identificam como peixes fora d’água em suas próprias casas – uma decisão que poderia funcionar caso o filme demonstrasse algum interesse em explorar as nuances emocionais e as relações afetivas daqueles indivíduos de maneira minimamente densa e elaborada. Em vez disso, o que temos é uma narrativa que busca “costurar” cada elemento narrativo/temático/dramático de forma artificial e preguiçosa, como se seguisse uma checklist de “coisas que não podem faltar em qualquer história do selo Disney” sem jamais imprimir vigor ou personalidade a estas.
Não, o problema de Encanto não está em sua trama ser “formulaica”, mas no fato de seu desenvolvimento ser esquemático a ponto de fazer todas as relações entre os personagens – que deveriam ser o centro emocional da obra – soarem genéricas, fragilizando o peso dramático que aquelas deveriam ter (basta perceber como os diálogos entre Mirabel e a maioria de seus familiares soam superficiais e pré-prontos, ao passo que as dores e os conflitos internos dos demais Madrigal são apresentados de forma tão corriqueira que jamais conseguimos “comprá-los” de fato). Aliás, a maneira com que os diretores Jared Bush e Byron Howard (responsáveis pelo ótimo Zootopia, o que torna ainda mais espantosa a falta de dinamismo de Encanto) lidam com os aspectos narrativos e dramáticos do longa é tão automática e “mecânica” que, quando a projeção chega ao fim, a sensação que fica é a de que tudo que acompanhamos nos 90 minutos anteriores se resumiu a um imenso primeiro ato, já que os realizadores parecem muito mais interessados em introduzir ideias, personagens e conflitos do que em levá-los adiante – não é à toa que o clímax da narrativa jamais soa como tal, carecendo de uma coesão que o faça soar como uma conclusão sólida para tudo que foi preparado anteriormente.
Aliás, o desespero de Encanto em apresentar conceitos/personagens novos é tão maior que seu interesse em desenvolvê-los que, quando chegamos ao terço final da projeção, o longa ainda está tendo que recorrer a diálogos expositivos e números musicais a fim de explicar quem é fulano/cicrano/beltrano – e, mesmo assim, terminamos o filme sabendo apenas o básico sobre eles, sem sentirmos que os conhecemos de fato. Por falar em números musicais, Encanto aqui demonstra uma fragilidade inequivocamente grave: para uma obra que tanto buscou se inserir no gênero “musical”, não há uma canção que seja particularmente memorável – uma decepção que também se aplicou a Frozen 2. Sim, existem melodias que ficam na memória (“The Family Madrigal” é a melhorzinha), mas até estas operam mais como “músicas-chiclete” do que como algo que gostamos de relembrar. E se “Dos Oruguitas” revela-se aborrecida demais para pontuar aquele que deveria ser o momento mais tocante da narrativa, “We Don’t Talk About Bruno” é um daqueles fenômenos claramente fabricados pela empresa que o bancou (afinal, o poder mercadológico da Disney é tão absurdo que é capaz de transformar literalmente qualquer coisa em hit absoluto).
Dito isso, Encanto nem de longe representa uma experiência desagradável – o que se deve, em boa parte, a alguns de seus personagens (ênfase no “alguns”, já que a maioria deles se resume somente a vislumbres do que parecem ser figuras interessantes). Ganhando energia e carisma através da ótima performance vocal de Stephanie Beatriz (da série Brooklyn Nine-Nine), que oscila entre o entusiasmo das cantorias e a introspecção dos momentos mais íntimos com uma agilidade fabulosa, Mirabel Madrigal se revela uma protagonista perfeita para uma história que, afinal, se propõe a centrar-se em uma heroína comum no meio de coadjuvantes extraordinários – e “comum” é um adjetivo que definitivamente se aplica a Mirabel, que, com seus óculos “fundo de garrafa”, seus vestidos largos e sua bolsinha atravessada, jamais parece uma heroína que esperaríamos ver em uma aventura. Da mesma forma, é admirável que o filme opte por resolver o conflito entre Mirabel e a avó Alma fugindo de qualquer maniqueísmo, mostrando-se maduro ao entender as motivações de ambas em vez de simplesmente condenar uma das duas.
Mas é o vilarejo-título de Encanto que se apresenta como o personagem mais fascinante de toda a obra: retratada pelo designer de produção Ian Gooding e por sua assistente, Lorelay Bove, como uma terra que enche os olhos em função de sua vasta variedade de cores vibrantes e alegres que se encontram em uma harmonia esplendorosa, a comunidade de Encanto surge como um ambiente não só plasticamente bonito (que também é), mas também vivo, como se respirasse e reagisse com intensidade, calmaria ou melancolia a cada acontecimento da trama – mérito também de toda a equipe de animadores, que se certificam de refletir cada traço de comportamento daqueles cenários-personagens em detalhes como, por exemplo, os ladrilhos que se movem como se tivessem vida própria ou as luzes que se acendem/apagam à medida que a casa “sente” o entusiasmo/desânimo de seus ocupantes.
Ainda assim, Encanto termina deixando a sensação de ser uma obra que mais propõe arcos, conceitos e discussões ambiciosas do que as desenvolve de fato, apresentando-se como um passatempo simpático, divertidinho… e só.
Em suma: é um filme que, com o perdão do trocadilho, carece de… encanto.
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(Lembre-se: a pandemia não acabou. Se for sair de casa e ir ao cinema, siga todos os cuidados sugeridos pelas organizações sérias de Saúde: use máscara, mantenha uma distância segura dos demais espectadores, evite se aglomerar e – o mais importante – vá ao posto tomar sua vacina. Se já tomou a primeira dose, tome a segunda. Se já tomou a segunda e já chegou a vez de tomar a terceira, tome a terceira – se ainda não chegou, espere e vá assim que ela estiver disponível. É triste ter que escrever isto, mas… não escute o atual presidente da República (ou mesmo seu ministro da Saúde): vacine-se e proteja-se. Só assim conseguiremos construir um caminho para finalmente vencermos a COVID-19 e sairmos desta crise que ninguém aguenta mais. #ForaBolsonaro)