First Cow: A Primeira Vaca da América é um filme simples, com uma premissa simples, ambientado num cenário (aparentemente) simples e que gira em torno de homens simples. E, mesmo assim, é também um filme que encontra, na simplicidade e na escala reduzida de seus acontecimentos, a oportunidade de se debruçar sobre temas muito maiores do que poderíamos esperar e – o mais importante – sobre emoções humanas cuja magnitude é inquestionável e que representam aquilo que de melhor a nossa espécie pode oferecer: o afeto e a intimidade.
Mais novo longa dirigido e co-escrito por Kelly Reichardt (Antiga Alegria, Wendy e Lucy, O Atalho, Certas Mulheres), First Cow começa com uma cena no presente na qual uma mulher passeia com um cachorro e encontra, no meio do campo, dois esqueletos enterrados. A partir daí, voltamos para 1820 e passamos a acompanhar Cookie, que, junto a um pequeno grupo de exploradores que viajam em direção a Oregon, trabalha de cozinheiro para eles. Numa noite qualquer, porém, Cookie acaba se deparando com King Lu, um imigrante chinês que está fugindo de russos que querem matá-lo – e, uma vez unidos, os dois homens tornam-se amigos e passam a dividir uma cabana solitária próxima a um vilarejo. No entanto, percebendo que precisam encontrar um jeito de ganhar dinheiro, Cookie e King Lu elaboram um plano inusitado: depois de descobrirem que o rico Chefe Factor comprou uma vaca – a primeira da região –, eles decidem invadir seu terreno de madrugada para roubar o leite do animal e, com este, cozinhar biscoitos para vendê-los no vilarejo. Biscoitos estes que, claro, se revelam um sucesso.
Voltando a investir no estilo minimalista e frequentemente contemplativo que a tornou conhecida, Kelly Reichardt dedica o tempo que julga necessário aos pequenos detalhes que compõem aquele universo e o contexto no qual a trama se insere: desde o início, a cineasta se concentra, por exemplo, nas mãos de Cookie enquanto colhe flores amarelas do solo e, ao avistar uma lagartixa imóvel de cabeça para baixo, ajuda-a a retomar sua posição – e o fato de Reichardt deixar que estas pequenas ações se prolonguem por um tempo considerável (e, no caso desta cena, ao som da trilha sensível de William Tyler) ajuda a reforçar a atmosfera doce e carinhosa que aqueles personagens pedem. Sim, porque First Cow é, em essência, uma narrativa sobre amizade, sendo, portanto, apropriado que a cineasta sempre retrate a dinâmica entre Cookie e King Lu como uma relação carregada de afeto, na qual um sempre demonstra se importar com o outro ou é visto realizando alguma gentileza – e, no processo de construir a cumplicidade entre os dois, Reichardt faz jus à citação de William Blake que abre a projeção: “O pássaro, o ninho; a aranha, a teia; o Homem, a amizade”.
Uma cumplicidade que, é claro, não soaria tão plausível se os atores por trás dos dois personagens não os interpretassem com propriedade – e, neste sentido, a escalação e o desempenho de John Magaro revelam-se perfeitas em função da sensibilidade que ele incute a Cookie, contrastando as roupas volumosas, a barba cheia e a postura rígida do sujeito ao tom de voz doce e sereno que sai de sua boca e que denota uma delicadeza surpreendente (considerando, mais uma vez, a aparência do sujeito). O mesmo se aplica à composição de Orion Lee como King-Lu, que, assim como Magaro, retrata o imigrante como uma figura inicialmente intensa, ofegante e urgente (afinal, ele tinha acabado de escapar da morte e estava/está fugindo de um grupo que quer matá-lo), mas que aos poucos conquista graças não apenas à sua postura descontraída, mas também à lealdade que demonstra a Cookie em seus atos de gentileza e nos diálogos que troca com o amigo.
A delicadeza de First Cow (e de seus personagens), contudo, não impede Kelly Reichardt de retratar as dificuldades que Cookie e King-Lu enfrentam por se encontrarem à margem de uma Sociedade que, mesmo simples, pouco desenvolvida e com poucas casas e habitantes, já expunha as bases capitalistas que lapidava e que, por sua vez, culminariam na profunda desigualdade que não só perdura, como se acentua até hoje. A estrutura dos Estados Unidos (e de seu modelo econômico), portanto, já era bem visível mesmo num pequeno vilarejo no interior do país em 1820 – e, se homens como os dois amigos que acompanhamos aqui são atirados num estado de miséria quase absoluta (vivendo em uma cabana suja, apertada e escura), é para que ricaços como Chefe Factor se mantenham isolados num topo cada vez mais alto. Não há atitude mais natural, por parte de Cookie e King-Lu, do que se aproveitar dos recursos de quem os oprime, não é mesmo?
Pois muitas vezes, a melhor forma de entendermos os problemas do mundo contemporâneo (e como viemos parar nele) é retornando às suas bases, ao momento em que tudo começou. Neste caso, à “primeira vaca da América”.