“Em algum lugar da Terra Oca.”
Eu juro: esta é a primeira frase a surgir em Godzilla x Kong: O Novo Império, aparecendo num rápido letreiro que brevemente explica onde a trama se situa. Se isso não resume perfeitamente todo o teor de bobajada que ditará os próximos 115 minutos de projeção, eu não sei o que mais poderia resumir. Pois a verdade é que Godzilla x Kong pode ser acusado de muitas coisas, menos de ser um filme que não compreende o que é – e, do início ao fim, o diretor Adam Wingard assume o absurdo e o nonsense da própria premissa do longa com um afinco que chega a ser contagiante.
Neste sentido, fica difícil negar que, problemas à parte, Wingard tem imenso carinho pelo universo dos kaiju (algo que já reconheci em minha crítica de Godzilla vs Kong) e aproveita a chance de dirigi-los em uma superprodução multimilionária com o entusiasmo de uma criança que brinca empolgada com monstrinhos de brinquedo. Isto é algo que fica claro em toda a própria abordagem estética de Godzilla x Kong: ao contrário da maioria dos “filmes de boneco” que temos visto nos últimos anos (e que costumam se apresentar visualmente desinteressantes, reduzidos a cinzas), o trabalho de Adam Wingard e do diretor de fotografia Ben Seresin toma a direção oposta ao investirem numa paleta multicolorida, de tons intensos e supersaturados, e em sequências que, mesmo quando se passam em ambientes mais escuros, são iluminadas de modo a torná-las mais vibrantes, extraindo ao máximo possível o potencial lúdico e fantasioso dos monstros que orgulhosamente ostenta (sempre em planos grandiosos, que os trazem da cabeça aos pés e em poses imponentes).
Da mesma forma, a direção de arte de Tom Hammock concebe a “Terra Oca” como um mundo tão absurdo quanto um filme destes lhe permitiria ser, sendo interessante a variedade de biomas e ecossistemas que ali coabitam (florestas, mares, vulcões e até um… desfiladeiro com duas pirâmides de cristal – ou algo parecido – invertidas que se encostam) e que parecem sempre modificadas pelos seres vivos de cada região (desde os próprios kaiju até um grupo de nativos que se constituíram ali). Além disso, Wingard busca maneiras criativas de integrar as condições específicas da “Terra Oca” às cenas de ação, culminando numa sequência que traz monstros que pesam toneladas duelando em gravidade zero – e gosto particularmente de como o peso deles parece se adequar à gravidade específica daquele mundo: se na Terra “de cima” as criaturas soam mais pesadas, lá “embaixo” elas se movem com mais facilidade e fluidez. Para completar, os designs das criaturas em si são inventivos o bastante para deixar Guillermo del Toro babando, sugerindo uma diversidade de espécies que indica um mundo vivo em funcionamento ali (o “lagartão de gelo” do vilão, por exemplo, se difere de Godzilla por ter cabeça achatada e carcaça branca/rosa; os pêlos de Kong são mais escuros, ao passo que os macacos “do mal” têm um tom mais avermelhado, ardente; uns bichos têm fachos de luz coloridos cruzando seus corpos; umas aves são amarelas com bolinhas pretas, outras não).
Mas um filme como Godzilla x Kong, é claro, depende não só da criação de seus monstros, mas das sequências de ação que, afinal, os botarão para jogo – e, de modo geral, os resultados de Adam Wingard aqui se mostram bem-sucedidos, criando batalhas que aproveitam bem as diferentes habilidades de cada personagem, mostrando como uma pode contrapor e/ou complementar a outra, e que evitam a confusão visual ao registrarem a ação através de planos gerais/conjuntos que duram tempo suficiente em vez de se cortarem a cada milissegundo (a única exceção é justamente o clímax, quando há um excesso de prédios se obliterando em direção à câmera – por sua vez, muito próxima à “zona de conflito” – que acaba atrapalhando a mise-en-scène em vez de ajudá-la). Aliás, confesso que em alguns momentos o filme me surpreendeu com sua violência gráfica (já na primeira cena, Kong aparece partindo um lobo gigante no meio e se ensanguentando com suas vísceras), algo que ajuda a reforçar a selvageria daqueles monstros – o que, no entanto, não impede o longa de retratá-los com humor, como ao trazer Kong tomando uma chuveirada numa cachoeira depois de um longo dia de trabalho (leia-se: de sair no braço com outros bichões) e Godzilla dormindo no Coliseu como se este fosse a caminha do Garfield.
Por outro lado, sempre que as tentativas de humor provêm dos personagens humanos, os resultados são bem menos eficazes, já que, de modo geral, os indivíduos em carne-e-osso de Godzilla x Kong são personalidades francamente aborrecidas e sem graça (sim, isso é um problema crônico de basicamente todos os capítulos do “MonsterVerse”* e, pelo jeito, continua sem solução). E, embora eu aprecie o fato de o caçador interpretado por Dan Stevens se chamar apenas… “Caçador”, assumindo o arquétipo do personagem sem quaisquer rodeios, a verdade é que os comentários engraçadinhos ditos pelo sujeito raramente mostram-se inspirados o suficiente para provocar o riso, ao passo que o podcaster vivido por Brian Tyree Henry segue tão chato quanto já era no filme passado, mas com o agravante de que desta vez sua participação na trama tem ainda menos justificativa, sendo notória a dificuldade do roteiro em encontrar um motivo para trazê-lo de volta. E o que dizer dos draminhas entre a cientista de Rebecca Hall e a adolescente Jia, que não poderiam ser apresentados/desenvolvidos de forma menos interessante?
Mas, por incrível que pareça, o que realmente enfraquece Godzilla x Kong é a maneira com que Adam Wingard e os roteiristas Terry Rossio, Simon Barrett e Jeremy Slater lidam com a narrativa propriamente dita – e, se este tipo de reclamação costuma ser contra-argumentada com o pretexto de que “este é um filme sobre monstros colossais saindo no tapa que, portanto, dispensa maior profundidade temática/narrativa” (e eu não poderia concordar mais com esta afirmação), aqui a situação se complica justamente porque os realizadores parecem acreditar precisar de uma trama mais elaborada. Assim, o longa resolve complicar demais uma premissa que poderia ser resumida em uma frase (um macaco do mal da “Terra Oca” quer chegar à superfície para conquistar o planeta inteiro e isso motiva Kong e Godzilla a se unirem para detê-lo), inchando a história com detalhes e personagens que nada acrescentam e que são levados de um canto a outro do mapa por sabe-se lá quais motivos para que, então, os kaiju enfim resolvam suas pendências – e isso compromete o ritmo do filme, fazendo seus 115 minutos soarem mais extensos que isso.
Dito isso, sempre que Godzilla x Kong parece prestes a cair no tédio, surge uma imagem como aquela que traz um macaco gigante (que pode não ser Kong) montado num lagartão gigante (que pode não ser Godzilla) e partindo para o soco com outras criaturas de seu tamanho. E isso ajuda a movimentar e equilibrar as coisas.
—
*Críticas anteriores do “MonsterVerse”: Godzilla, Godzilla 2: Rei dos Monstros, Kong: Ilha da Caveira e Godzilla vs Kong.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: