Hebe Camargo é uma figura tão enraizada no imaginário brasileiro que mesmo quem não viveu o auge de sua carreira sabe muito bem quem ela era – e não é para menos, já que, ao longo de sua vida, a apresentadora ganhou a alcunha de “Rainha da Televisão Brasileira”. Eu, particularmente, nasci no finalzinho dos anos 1990 e, graças ao hábito que minha avó tinha de assistir a praticamente tudo do SBT, acabei crescendo com a Hebe já em seus últimos anos de vida, enxergando sua presença na TV como algo tão natural quanto a TV em si. Aliás, a existência de Hebe me parecia tão consolidada no mundo que ainda hoje acho estranho pensar que ela não está mais entre nós – e mesmo que já tenham se passado sete anos desde sua morte, na minha cabeça ainda parece se tratar de algo que aconteceu há bem menos tempo.
E é claro que a trajetória de alguém como Hebe Camargo inevitavelmente renderia um filme.
Provavelmente influenciado pelo bom resultado de Bingo: O Rei das Manhãs (uma cinebiografia do palhaço Bozo disfarçada de história original), Hebe: A Estrela do Brasil não se propõe a resumir toda a vida da personagem-título, preferindo, em vez disso, fazer um recorte específico de meados da década de 1980, quando a ditadura militar definhava e o processo de abertura política avançava cada vez mais. Nesta época, Hebe apresentava seu programa na Rede Bandeirantes, que, dirigido por Walter Clark, vivia testando os limites daquilo que era permitido na TV – afinal, se os militares diziam que a censura tinha acabado, não fazia sentido perseguir uma emissora só porque esta levava figuras como Dercy Gonçalves e Roberta Close para o palco. Mas a verdade é que a censura ainda não havia chegado ao fim, fazendo com que Hebe fosse pressionada e chantageada até que, um dia, resolvesse cancelar seu contrato com a Rede Bandeirantes. Pouco tempo depois, no entanto, Silvio Santos chamou a apresentadora para migrar para o SBT – e, a partir dali, sua carreira nunca mais seria a mesma.
Tratando Hebe Camargo como ícone absoluto desde o princípio, o diretor Maurício Farias faz questão de antecipar a primeira aparição da biografada com reverência absoluta, preparando o espectador para a entrada da protagonista ao mostrá-la num camarim de costas, ao gastar planos-detalhe que enfocam apenas os objetos usados por ela e ao trazer os demais personagens falando sobre como é importante que ela suba logo ao palco – e, quando Farias finalmente revela o rosto de Hebe, sua aura emblemática torna-se inquestionável. Da mesma forma, o diretor confere dinamismo às sequências que giram em torno do programa de auditório em si, criando momentos que, sim, se beneficiam da nostalgia do público, mas que não se definem apenas por isso – e se a fotografia de Inti Briones empresta um ar majestoso a estes momentos (o que quase me faz perdoar a obviedade com a qual retrata a sala dos censores da ditadura, toda mergulhada em sombras), a direção de arte de Luciane Nicolino se sai muitíssimo bem ao prestar atenção em elementos que vão dos mais óbvios (tevês de tubo; roupas extravagantes; penteados daquela época; cenários multicoloridos) aos mais sutis (garrafas de champanhe; revistas da década de 1980; o par de óculos usado por Marcello, o filho de Hebe).
Por falar em década de 1980, é curioso que Hebe: A Estrela do Brasil chegue aos cinemas em 2019; ainda mais se considerarmos o contraponto entre o período retratado no filme (o da redemocratização) e a assustadora realidade de hoje (na qual flertamos cada vez mais com a repressão de 50 anos atrás). Neste sentido, um longa como este acaba representando uma inspiração para aqueles que se recusam a tolerar novas tentativas de censura, já que Hebe Camargo sempre foi uma mulher à frente do seu tempo no que dizia respeito à luta pela liberdade – e o mesmo se aplica ao seu posicionamento diante dos direitos dos trabalhadores, dos LGBTs e das mulheres; não à toa, estamos falando de uma mulher que desde os anos 1940 se estabeleceu como uma profissional voraz, rejeitando a posição de “dona de casa que vivia às custas do marido e do sistema patriarcal”. A coragem de Hebe, portanto, era uma de suas maiores virtudes. (O que, inclusive, me leva a imaginar qual seria sua reação diante do Brasil no qual vivemos hoje e, principalmente, do apoio de Silvio Santos ao atual governo.)
Infelizmente, os méritos de Hebe: A Estrela do Brasil são contrabalanceados pelo roteiro de Carolina Kotschio, que se apresenta, no mínimo, problemático: criando algumas situações simplesmente inexplicáveis (há um momento, por exemplo, em que Hebe visita um hospital público e ninguém ao seu redor a reconhece), o filme peca especialmente na artificialidade de diálogos, que frequentemente soam como algo que nunca seria dito por alguém – e são poucas as falas que não parecem ter sido escritas com o único propósito de expor para o espectador o que os personagens estão sentindo e/ou fazendo. Como se não bastasse, Kotschio desperdiça o potencial dramático de várias situações: o arco individual de Marcello, frisado em duas ou três cenas, não chega a lugar algum, ao passo que a memorável entrevista de Hebe ao programa Roda Viva se resume a uma menção passageira. Além disso, é sintomático que o roteiro não se preocupe sequer em oferecer um desfecho para os abusos cometidos por Lélio Ravagnani, o marido de Hebe, levando o público a subentender que o casamento dos dois terminou por ali – e ignorando, com isso, o fato de ter durado até a morte de Lélio, em 2000.
Aliás, a superficialidade de Hebe: A Estrela do Brasil é tão grande que tende a transformá-lo não em uma biografia, mas em uma hagiografia: sim, a decisão de tratar Hebe como um ícone pode funcionar no momento em que ela aparece pela primeira vez, mas isto não significa que o filme deva sempre encará-la como um ser humano perfeito, que se refere a todos os colegas com o máximo de gentileza e que nunca reage de maneira desproporcional, sendo notável, por exemplo, que até mesmo suas atitudes mais vaidosas e egocêntricas sejam encaradas não como tropeços morais, mas como algo engraçadinho. Neste sentido, é revelador que o longa faça questão de abordar tangencialmente o apoio de Hebe ao infame Paulo Maluf, evitando a qualquer custo entrar em questões mais polêmicas.
O que nos traz ao aspecto mais delicado do filme: a atuação de Andrea Beltrão – que, aqui, encara a difícil tarefa de viver uma figura conhecida e repleta de trejeitos e costumes que poderiam facilmente soar caricatos. De minha parte, confesso que sempre nutri simpatia por Beltrão, uma atriz que considero carismática, cheia de energia e dotada de um timing cômico admirável. Aqui, no entanto, ela já começa prejudicada pelo fato de ser nova demais para o papel, de não ter nada a ver com a Hebe original e, claro, de ser carioca – e sua tentativa de simular um sotaque paulista apresenta-se irregular, com várias oscilações na sonoridade das palavras. Assim, a sensação que temos é a de estarmos diante não de Hebe Camargo, mas de Andrea Beltrão imitando Hebe Camargo, o que é uma pena.
Ainda assim, nem o maior tropeço de Beltrão se equivale à cena que traz Daniel Boaventura sob a pele de Silvio Santos. O problema, vale apontar, não está na composição do ator, mas no medo que o próprio filme tem de retratar o apresentador/empresário (afinal, estamos falando de uma das figuras mais conhecidas – e imitadas – da História do Brasil). Interpretar Silvio Santos sem fins humorísticos é uma missão quase impossível – e é uma missão que Hebe: A Estrela do Brasil encara com imenso pavor, colocando Boaventura sob a pele do “patrão” em uma sequência rápida, com pouquíssimas trocas de diálogos e que se desenrola com notável distanciamento.
E é surpreendente que, mesmo com tantos problemas, esta cinebiografia ainda seja decente.