Sempre que penso neste Homem-Aranha, primeira superprodução baseada nos quadrinhos da Marvel depois do sucesso de X-Men, a cena que me vem à mente é a dele voando pelos céus de Manhattan pela primeira vez, numa montagem que intercala suas pequenas ações heroicas e as reações dos cidadãos nova-iorquinos diante do surgimento de uma figura daquelas. Há uma sequência, em especial, que é rápida, porém inesquecível: um close do rosto do herói que mostra os detalhes de sua máscara pela primeira vez, um plano-detalhe de sua mão disparando uma teia e um plano aberto que… bem, o traz voando de novo. Assim, a sensação provocada pelo cineasta Sam Raimi é a de total fascínio pela figura do herói, construída por um diretor que obviamente sabe estar lidando com um super-herói tão popular e que aproveita a oportunidade de ouro que reconhece ter em mãos – e é apropriado, portanto, que o filme exiba este mesmo fascínio ao criar um universo que escancara suas origens de quadrinhos.
Escrito por David Koepp (Jurassic Park), Homem-Aranha se apresenta como uma história de origem extremamente fiel àquela concebida por Stan Lee e Steve Ditko em 1962: Peter Parker é um adolescente tímido, desprezado pela maioria dos colegas de classe e que, órfão desde criança, mora com seus tios Ben e May. No entanto, tudo na vida do garoto muda depois que, durante uma excursão escolar, uma aranha geneticamente modificada o morde – e, no dia seguinte, Peter se descobre com superpoderes, como força sobre-humana, capacidade de escalar paredes e de disparar teias pelas mãos e um “sentido de aranha” que o permite identificar os perigos à sua volta. Assim, depois que um ato de orgulho coincidentemente leva ao assassinato de seu tio Ben, Peter reconhece a culpa que teve ao levá-lo ao cemitério e decide usar seus poderes para fazer o bem, assumindo a identidade secreta de Homem-Aranha – uma identidade que torna-se ainda mais necessária com a chegada do vilão, Duende Verde.
Hábil ao trazer para o Cinema a atmosfera lúdica, inocente e multicolorida dos quadrinhos (algo que Richard Donner também fez em Superman – não à toa, Raimi faz uma homenagem clara à cena em que Clark Kent vinha correndo, abria a camisa e estampava o “S” de sua logomarca, substituindo Christopher Reeve por Tobey Maguire), Homem-Aranha é uma adaptação que não teme assumir o caráter cartunesco que sempre fez parte da mitologia do personagem, mostrando-se diametralmente oposto, neste sentido, ao X-Men de Bryan Singer, que substituía as cores habituais do universo dos super-heróis por uniformes de couro preto e por cenas cinzentas e sombrias (o que talvez fosse consequência do fracasso do Batman & Robin de Joel Schumacher). Assim, o vermelho e o verde dos uniformes do herói e do vilão tornam-se saltados e supersaturados (o mesmo se aplica aos cabelos ruivos de Mary Jane), ao passo que as caracterizações do tio Ben, da tia May e de J. Jonah Jameson apresentam-se estilizadas, como se transportadas das páginas dos quadrinhos para a tela grande.
Tudo isso, é claro, se deve aos esforços do diretor Sam Raimi, que, aqui, cria um universo cuja lógica interna é bastante particular, flertando com a caricatura das HQs e permitindo que a entrada de elementos tão lúdicos torne-se natural (é espantoso, por sinal, que o Raimi deste filme seja o mesmo da trilogia Evil Dead: Uma Noite Alucinante, que, por melhor que fosse, nada tinha a ver com este longa). No entanto, ao abraçar a fantasia por trás do conceito do personagem, o cineasta confere à primeira metade da narrativa um sentimento de encantamento inequívoco, levando o espectador sentir-se contagiado pela alegria de Peter ao descobrir seus poderes, pela dor de vê-lo perder seu tio Ben e pela “grande responsabilidade” que assume ao surgir vestido de Homem-Aranha. Aliás, até a maneira de Raimi registrar as ações do herói se mostram coerentes com o fascínio demonstrado, alternando entre planos grandiosos que o trazem voando por Nova York e outros que apresentam o ponto de vista dos cidadãos diante do mesmo (e meu plano favorito do filme inteiro é aquele que enfoca os nova-iorquinos, na rua, observando de longe o Aranha enquanto este aparece voando com Mary Jane no colo).
Por outro lado – e isto é admirável –, Homem-Aranha se recusa a abrir mão dos dramas do protagonista: mesmo ambientado em um universo fantástico, claramente influenciado pela estética dos quadrinhos, as dores e os conflitos que sempre marcaram a persona de Peter Parker encontram-se presentes aqui; o que é fundamental, já que o motivo que tornou o herói tão querido pelos leitores sempre foi o fato de lidar, em sua vida privada, com problemas existentes no cotidiano de quaisquer pessoas. Assim, não apenas entendemos as inseguranças de Peter no colégio (ao ser ridicularizado pelos colegas e ao sentir dificuldades de falar com a garota da qual gosta), como também recebemos o impacto que a morte do tio Ben lhe causou (uma revolta seguida de uma culpa transformadora), nos fazendo captar o peso da responsabilidade que, afinal, fez o menino se tornar um super-herói – se não captássemos, suas ações posteriores soariam inconsequentes.
Claro que, por trás de Peter Parker, é importante que haja também um ator capaz de interpretá-lo, sendo um alívio, portanto, que Tobey Maguire dê conta do recado: se, em outros trabalhos, seu tom de voz monocórdio e sua expressão travada soam como limitações do ator, aqui tornam-se representações perfeitas de pequenos traços da insegurança de Parker, revelando-se, portanto, uma escalação apropriada para o personagem que Stan Lee e Steve Ditko criaram lá atrás. E, se James Franco nem sempre se sai bem ao encarnar as mágoas de Harry, o melhor amigo de Peter, Kirsten Dunst é competente ao encarnar o sentimento de fracasso que pesa na consciência de Mary Jane (e a torna mais humana), ao passo que Willem Dafoe retrata o Duende Verde como um vilão cartunesco, mas sádico, que aos poucos foge ao controle de seu alter-ego, Norman Osborne (o pai de Harry), para então dominá-lo.
Em contrapartida, Homem-Aranha também conta com sua parcela de problemas – e o principal destes é o fato de a segunda metade da narrativa não saber muito bem para onde ir, já que, depois de apresentar por completo a figura do herói, o filme parece ter dificuldades de encontrar uma história para contar, saltando de situação em situação e soando um pouco episódico no processo (um problema que, inclusive, viria a se tornar recorrente nos filmes de origem de super-heróis lançados nos anos seguintes). E se os efeitos digitais usados para criar o Aranha já eram problemáticos na época (lembrem-se: 2002 foi o ano em que conhecemos Gollum), o senso de humor irreverente e espontâneo que sempre caracterizou o personagem nos quadrinhos faz muita falta aqui: o que há de personalidade em Peter Parker, falta no caladão Aranha.
Embalado pela excelente trilha de Danny Elfman, que já tinha contribuído para o universo dos super-heróis com os Batmans de Tim Burton e que, desta vez, volta a criar um tema marcante para outro personagem (e para seu vilão), Homem-Aranha é uma experiência que funciona justamente por entender que o que torna uma adaptação eficiente é sua fidelidade não necessariamente à narrativa da obra original, mas ao estilo e à atmosfera da mesma. E não há como resistir ao inesquecível encantamento que sentimos quando vimos o Homem-Aranha disparar teias e se balançar por Nova York pela primeira vez – um encantamento que hoje, em função do número cada vez maior de outros filmes sobre super-heróis, é praticamente impossível de ser repetido.
Update, 2024: Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: