Venus e Serena Williams são irmãs com um ano de diferença de idade. Criadas em uma casa apertada com os pais e outras três crianças num bairro pobre e violento de Compton, na Califórnia, as duas estavam determinadas a alcançar um objetivo em comum: o status de campeãs absolutas de tênis. Com isso, as duas passaram a treinar exaustivamente e a se revelar verdadeiros fenômenos do esporte, impressionando praticamente todos que se aproximavam delas e/ou se ofereciam para treiná-las. Aliás, o talento mútuo de ambas foi tão avassalador que nem a teimosia e a intransigência de seu pai, Richard, ao assessorá-las conseguiu diminuir seu brilho: o sujeito foi estúpido ao tirar as meninas dos torneios juvenis (dificultando o desenvolvimento de suas carreiras) e arrogante a ponto de espantar basicamente todos os possíveis treinadores/patrocinadores que se aproximavam, mas, no fim das contas, tanto Venus quanto Serena terminaram cada uma no topo da Associação de Tênis Feminino por semanas.
Duas personalidades de capacidades excepcionais e cujas histórias poderiam facilmente render um filme sobre suas vidas – e, se digo “poderiam”, é porque King Richard toma a decisão de adotar como protagonista não Venus ou Serena, mas… seu pai.
Dirigida por Reinaldo Marcus Green (Monstros e Homens), esta biografia faz um bom trabalho ao apresentar seus conflitos e ao construir uma “história de superação” sem soar descaradamente como um caça-Oscars (embora obviamente não deixe de sê-lo), fazendo as dores e as ambições dos personagens parecerem naturais em vez de fabricadas sob demanda com o intuito apenas de levar o espectador às lágrimas (embora a trilha de Kris Bowers irrite ao mastigar cada mínima sensação que o público deve ter a cada passagem da narrativa). Assim, ao longo da projeção, somos levados a torcer pelo sucesso das irmãs Williams e a lamentar as eventuais derrotas daquela família – e admiro a não só a eficácia, mas a coragem do filme de romper com a tradicional obrigação de encerrar-se com a vitória do(a) protagonista, tornando o desfecho da história ainda mais inesperado (e dramático) graças à sensação de infalibilidade que manteve acerca daquelas personagens ao longo das mais de duas horas anteriores. Da mesma forma, embora o tema central da obra não seja o racismo presente na estrutura das relações sociais, o roteiro do estreante Zach Baylin consegue encaixar alguns momentos pontuais que apontam a discriminação velada que compõe, por exemplo, a dinâmica entre Richard e os treinadores que busca e que o rejeitam por suas filhas “não se encaixarem no padrão requisitado” – um apontamento que a narrativa não se vê forçada a parar para fazer.
Da mesma forma, o elenco cumpre bem suas funções mesmo presos a personagens que nem sempre (ou quase nunca) o roteiro favorece ou sabe exatamente como abordar: se por um lado é uma pena constatar como Venus e Serena Williams jamais têm voz própria em um projeto que em boa parte deveria ser sobre elas, por outro é importante ressaltar que as pequenas atrizes que as interpretam (respectivamente, Saniyya Sidney e Demi Singleton) são bem-sucedidas em expressar, no pouco espaço que lhes é concedido, as ambições que têm de decolarem no esporte, as dores que sentem por ver o sonho continuamente atrapalhado pelo pai e as frustrações que eventualmente colhem em função disso. Enquanto isso, Aunjanue Ellis, que interpreta a mãe Brandy, desempenha o importante papel de representar uma barreira contra a irresponsabilidade e a estupidez que Richard faz respingar em Venus e Serena (um papel que se torna ao mesmo tempo ingrato, já que nenhuma das correções que Brandy coloca para o marido tem qualquer consequência prática para ele ou – pior – para a narrativa). E como é bom ver Jon Bernthal vivendo um personagem que foge dos tipos durões e psicopatas que o ator costuma encarnar na maioria das ocasiões recentes, permitindo-lhe injetar calor e empatia ao treinador Rick Macci.
O que nos traz ao indivíduo que dá título ao filme e ao ator que o interpreta. Assim como todo o longa ao seu redor, Will Smith encarna Richard Williams em uma performance que, embora pronta para ser indicada a prêmios, jamais parece criada sob o pretexto único e exclusivo de abocanhá-los (como ocorria no pavoroso Beleza Oculta, por exemplo), ilustrando com cautela não só a postura física combalida do sujeito (resultado do desgaste para com o próprio corpo) e o sofrimento que julga necessário guardar em prol dos “ensinamentos” que pretende transmitir às filhas – e, se coloco “ensinamentos” entre aspas, é porque honestamente não acho que dê para classificar o que Venus e Serena recebem de seu pai como aprendizado e nem acredito que as intenções do sujeito fossem positivas. Na verdade, o intuito de Richard não parece ser o de ensiná-las qualquer coisa, mas o de transformá-las naquilo que ele planejou que fossem (independente da vontade individual delas) para depois se congratular por tê-las colocado no “caminho certo” (repito: mesmo que não fosse o caminho que elas escolheram em primeiro lugar).
Isto, contudo, não me incomodaria se King Richard entendesse as atitudes abusivas de seu protagonista como tais (e, sim, são abusivas: ele convence as filhas a dedicar suas vidas a se tornarem as melhores tenistas do mundo sem se preocupar se o objetivo de vida delas era este; ele as abandona na porta de uma lojinha porque elas comemoravam uma vitória num torneio juvenil; ele escolhe apoiar exclusivamente em Venus e jogar Serena para escanteio, separando as duas irmãs; etc). Em vez disso, porém, o que o filme faz é apresentar os momentos nos quais Richard é grosseiro, intransigente ou estúpido, mas sem jamais concluir que estas atitudes eram resultantes de desvio de caráter e prejudiciais às vidas pessoal e profissional das filhas. Ou seja: é como se o longa percebesse a babaquice do protagonista (tanto que há Brandy para protestar contra ele), mas nunca o repreendesse por esta – e isto se torna ainda pior quando constatamos o esforço da obra em nos convencer de que os erros de Richard foram responsáveis pelo sucesso de Venus e Serena, não sendo à toa que, nos tradicionais letreiros que surgem ao final da projeção e que abreviam o que aconteceu com o biografado nos anos seguintes à história contada ali, as frases que destacam os feitos das duas irmãs sejam pontuadas por um “Assim como Richard previu”.
Que King Richard tente creditar o sucesso de Venus e Serena ao seu problemático pai é algo que só consigo atribuir ao puro machismo. Que o personagem em si jamais faça por merecer tamanho crédito (ou, ora, um filme inteiro para enaltecê-lo) torna tudo ainda mais problemático, já que, na ânsia de encontrar alguma coisa para celebrar no protagonista, o longa acaba tratando ações escancaradamente abusivas e condenáveis como algo a se “admirar”, como combustível romântico para o talento das filhas.
Há também a fragilidade narrativa intrínseca ao fato de Richard ser um personagem com pouco potencial para sustentar o protagonismo de uma obra (ainda mais em comparação às suas filhas) – e não é à toa que, em vários momentos, sentimos o desespero gritante do roteiro em encontrar algum detalhe/conflito interessante na vida do sujeito que justifique toda a atenção dada ao seu arco, agarrando-se em pequenas situações dramáticas que, sejamos francos, nada acrescentam à trama ou aos resultados de Venus e Serena (todo o embate entre Richard e uma gangue local, culminando num quase assassinato que deixa o protagonista nitidamente abalado, serve apenas para dispersar o foco da narrativa e fazer a projeção atingir excessivos 145 minutos de duração).
E é isso que King Richard falha em perceber: seja por seu caráter duvidoso ou pelo fato de ser um protagonista simplesmente desinteressante, Richard Williams empalidece diante das duas extraordinárias atletas que criou – e que ambas recebam créditos de produtoras executivas desta cinebiografia, mostrando-se cientes da forma com que esta retratou seu pai, é algo que me dá um aperto ainda maior no coração, pois deduzo que Venus e Serena não se identificaram como vítimas de um homem cujos abusos autoritários nada têm de romântico ou motivador.
No aguardo do filme sobre Joe Jackson.
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(Lembre-se: a pandemia não acabou. Se for sair de casa e ir ao cinema, siga todos os cuidados sugeridos pelas organizações sérias de Saúde: use máscara, mantenha uma distância segura dos demais espectadores, evite se aglomerar e – o mais importante – vá ao posto tomar sua vacina. Se já tomou a primeira dose, tome a segunda. Se já tomou a segunda e já chegou a vez de tomar a terceira, tome a terceira – se ainda não chegou, espere e vá assim que ela estiver disponível. É triste ter que escrever isto, mas… não escute o atual presidente da República (ou mesmo seu ministro da Saúde): vacine-se e proteja-se. Só assim conseguiremos construir um caminho para finalmente vencermos a COVID-19 e sairmos desta crise que ninguém aguenta mais. #ForaBolsonaro)