Quando a Marvel encerrou a “Fase 1” de seu universo cinematográfico com Os Vingadores, os principais integrantes do grupo chegaram naquele filme já tendo sido desenvolvidos em longas particulares que, se não eram perfeitos, ao menos serviram para introduzir personagens carismáticos que aos poucos ganharam a simpatia do público. Assim, quando Homem de Ferro, Capitão América, Thor, Hulk e Viúva Negra enfim se encontraram, os espectadores já estavam suficientemente familiarizados – e simpatizados – com estes heróis. Agora, analisemos a situação da concorrência: depois de apresentar uma versão sombria do Superman em O Homem de Aço, a Warner tentou correr para estabelecer o universo DC em Batman vs Superman, não obteve bons resultados, foi capaz de gerar somente um sucesso inquestionável desde então (Mulher-Maravilha) e, agora, se vê obrigada a forçar um companheirismo entre seis personagens sendo que, destes, apenas metade tinha sido devidamente introduzida nos capítulos anteriores, o que é um tropeço óbvio.
Que Liga da Justiça não seja o desastre que se anunciava é uma surpresa – mas por pouco.
Escrito por Chris Terrio (que trabalhou com Ben Affleck em Argo) e Joss Whedon (Os Vingadores e Vingadores: Era de Ultron), Liga da Justiça começa mostrando como a morte de Superman no último filme impactou o mundo, que se vê bem mais vulnerável e pessimista agora. No meio disso, o vilão Lobo da Estepe chega para buscar as poderosas Caixas Maternas (seja lá o que estas forem) e usá-las a seu favor, o que leva Bruce Wayne e Diana Prince a recrutarem um pequeno grupo de combatentes – e, quando os dois vestem suas roupas de Batman e Mulher-Maravilha, logo se unem aos novatos Flash, Aquaman e Cyborg na batalha.
Deixando de lado a mentalidade de adolescente revoltado que transformou Batman vs Superman em uma experiência dolorosamente pretensiosa e monótona (aquele era um filme que tentava parecer adulto em vez de sê-lo), Liga da Justiça tenta exibir uma leveza (ênfase no “tenta”) que fica evidente logo na cena que abre a projeção e que traz Superman num vídeo amador ensinando bons costumes a um menino. Neste sentido, pode-se dizer que o longa dá continuidade ao otimismo que Mulher-Maravilha começou a injetar no universo cinematográfico da DC, o que invariavelmente remete à época em que os próprios quadrinhos de super-heróis contavam com uma inocência que ajudava a inspirar o bom-mocismo entre seus jovens leitores.
E é aí que entra um dos elementos mais inesperados de Liga da Justiça: seu bom humor. Adotadas com o intuito de fortalecer ainda mais o espírito jovial da obra, as constantes piadinhas mostram-se úteis quando tentam explorar a dinâmica entre os heróis, como na cena em que algo leva Aquaman a expor seus medos e sentimentos pela Mulher-Maravilha. Por outro lado, quando Snyder investe em passagens mais dramáticas, o resultado é sempre artificial – e a primeira cena de Cyborg no filme, em particular, é de uma cafonice atroz. De todo modo, acho que nem o melhor dos diretores poderia contornar algumas frases de efeito horrorosas (“As Caixas Maternas não têm poder; elas são o poder!“) e maluquices como aquela que ocorre no fim do segundo ato e que pode ser descrita como uma mistura de Capitão Fantástico com De Volta para o Futuro (vocês a reconhecerão).
Já as sequências de ação, que deveriam ser o grande atrativo do filme, mostram-se problemáticas logo nos primeiros minutos de projeção, quando o Batman aparece lutando contra um inseto gigante voador: concebida com um excesso de cortes e de planos que não fazem o menor sentido, a cena é caótica também na organização geográfica dos acontecimentos, chegando a trazer um personagem que parece se teletransportar de um quarteirão para outro – e esta confusão visual se mantém até o fim do filme, tornando-se ainda pior em função dos pavorosos efeitos digitais que, por sua vez, comprometem a fisicalidade do que está sendo apresentado. Além disso, é sintomático que, ao contrário de Patty Jenkins em Mulher-Maravilha, a direção aqui enfoque descaradamente as coxas e a bunda de Gal Gadot a fim de objetificá-la (o que também se aplica aos decotes usados pela atriz e às armaduras que o figurinista Michael Wilkinson criou para as amazonas, sempre com as barrigas à mostra).
Assim, Liga da Justiça é mais bem-sucedido ao abordar a relação entre os personagens do que a ação propriamente dita – e, após uma primeira metade frágil e desordenada, o filme ao menos ganha algum fôlego quando os heróis finalmente estão reunidos. Abandonando o sadismo e a agressividade apresentadas em Batman vs Superman, Bruce Wayne surge aqui como um indivíduo que sente-se mais à vontade ao assumir o posto de vigilante e que sabe gerenciar a equipe sem nunca menosprezar a liderança que Superman naturalmente alcança por ser, afinal, o mais poderoso dela – o que, no entanto, não torna menos estranha a mudança drástica na personalidade de Wayne entre um filme e outro, já que sua leveza aqui nada tem a ver com a brutalidade que mostrou da última vez. E, se Gal Gadot tem a oportunidade de tornar a Mulher-Maravilha menos ingênua e mais madura que em seu longa-solo, Jason Momoa exibe um carisma notável ao retratar Aquaman como um cara viril e irreverente, ao passo que Cyborg e Flash, infelizmente, se posicionam como os pontos fracos: o primeiro é apenas apático; o segundo é um moleque que se esforça demais para fazer rir e que, por consequência, acaba soando chato e inconveniente.
O mais espantoso, porém, é que uma das presenças mais ilustres de Liga da Justiça seja, na verdade, o Superman, que faz em 20 minutinhos aquilo que seus dois longas anteriores falharam: se estabelecer como um símbolo genuíno de esperança e otimismo. Antes, o herói era um peixe fora d’água que jamais compreendia seu papel entre os humanos e que era incapaz de se divertir com seus poderes; agora, contudo, Kal-El passou a levar sua conduta a sério, a acreditar na Humanidade e a liderar seus parceiros com responsabilidade, mesmo dando-se ao luxo de brincar pontualmente (e ouso dizer que, se continuar no bom caminho, Henry Cavill talvez se consolide como um sucessor ideal para o glorioso Christopher Reeve). Em contrapartida, o mesmo não pode ser dito sobre o horrível Lobo da Estepe, que nada mais é que um bonecão digital que diz as frases mais estúpidas do mundo, se veste de maneira carnavalesca e sequer conta com uma motivação interessante.
Atrapalhado também pela problemática montagem de David Brenner, Richard Pearson e Martin Walsh (sim, três montadores), Liga da Justiça ainda escorrega ao transitar entre certas sequências sem muita lógica e ao tornar o ritmo do primeiro ato apressado demais, escancarando todos os remendos feitos durante a pós-produção (que, por sua vez, deve ter cortado um monte de cenas adicionais). De todo modo, para cada momento que soa deslocado do resto do filme (como a sequência de créditos iniciais), há pelo menos um que se destaca (como aquele em que Flash usa sua velocidade para salvar a Mulher-Maravilha em queda livre).
Ocasionalmente trazendo uma ou outra imagem que parece saída das páginas de uma história em quadrinhos (a cena que surge durante os créditos finais, por exemplo), Liga da Justiça conta com um epílogo que, soando quase como um pedido de desculpas para os fãs da DC, acaba não só sintetizando o otimismo de seus personagens, mas também refletindo as condições do próprio universo cinematográfico da DC – que, ao seu próprio modo, ainda pode ter alguma esperança.
(Update, 30/03/2021: três anos e meio se passaram, muita coisa aconteceu de lá para cá e Zack Snyder teve a chance de lançar sua própria versão do filme, sem as interferências de estúdio e deturpações que depois saberíamos que foram feitas por Joss Whedon. Para ler o texto colossal que escrevi sobre o “corte” de Snyder, só clicar aqui.)