Menina de Ouro é um filme que empolga por criar esperanças e, depois, dilacera por mostrar como todas essas esperanças estão condenadas à dor, ao fracasso e à escuridão. É uma obra que se utiliza brilhantemente de suas bases melodramáticas a fim de discutir várias questões simultâneas: paternidade, crença, frustração, luto em vida e até eutanásia – e é impressionante que consiga ser exemplar em cada uma dessas esferas. Talvez seja meu longa favorito dentre os dirigidos por Clint Eastwood (se não for, é um dos três finalistas).
A relação entre Frankie (Eastwood) e Maggie (Swank) se forma numa dinâmica de pai-e-filha que nasce dos vazios de cada um: o primeiro é um pai sem filhos, um sujeito que luta para reestabelecer um mínimo de contato com a filha (que nunca vemos) e que há anos envia cartas sem jamais ser correspondido; a segunda é uma mulher sem parentes, que agora batalha para sobreviver e se sustentar sem poder contar com qualquer amparo familiar. Pois a verdade é que, no fim das contas, a relação mais genuína de pai-e-filha que poderia surgir era entre Frankie e Maggie mesmo, rompendo qualquer “necessidade” que não há) de laço biológico entre os dois; quem mais merece ser chamado de “família” pela boxeadora é o seu treinador, ao passo que o indivíduo que melhor se encaixa na categoria de “família” para o treinador é… sua boxeadora. É aquilo: pai é quem cria.
E é uma relação que respeita muito as personalidades de cada um: se Clint Eastwood compõe Frankie como um indivíduo distante, reservado e pouco gentil, faz todo o sentido que o personagem tenha, como reação inicial à chegada de Maggie, se fechar completamente, se recusar a embarcar na jornada da mulher (por ela ser… mulher, de fato, mas também, convenhamos, por um medo lá no fundo de acabar virando a figura paterna de uma nova “filha”). Já Hillary Swank retrata Maggie como uma explosão de energia e vitalidade, como uma moça que exala vida e movimento a cada respiro que dá – e mais: que pouco se importa com qualquer obstáculo que surja em seu caminho (o fato de ser mulher a torna alvo do machismo típico da indústria – e, sim, do próprio Frankie a princípio – e a sua idade, 30 e poucos anos, supostamente a torna “velha demais” para uns). Um não quer se arriscar virar pai, a outra não tem outra opção a não ser virar filha.
Mas a tragédia de Menina de Ouro está sempre à espreita, mesmo que, na maior parte do tempo, o filme jogue nossas esperanças lá em cima e nos deixe entusiasmados com os rumos que a carreira de Maggie vem tomando. Durante mais da metade da projeção, a boxeadora parece praticamente invencível; qualquer luta que ela disputa termina com ela vencedora. Aliás, a forma como Eastwood filma esses embates faz mais do que jus à riqueza das descrições feitas por Scrap (Freeman) em sua narração em off – e poucas vezes vi uma narração em off ser tão bem empregada quanto aqui, já que não só oferece uma quantidade impressionante de detalhes/significados sobre o esporte em si (o que só aumenta o seu impacto), como também começa soando quase como uma “voz de Deus” apenas para, pouco depois, se revelar a voz de Scrap, um indivíduo com tantas cicatrizes e machucados que, por isso mesmo, se torna o narrador perfeito para uma história como essa.
E é por Maggie passar a maior parte do filme sendo tão indestrutível que, quando chega o momento de sua queda, essa se torna infinitamente mais impactante e dolorosa do que já seria. É pelo contraste que o horror daquela tragédia se intensifica – e é justamente por Hillary Swank conferir tamanha energia e dinamismo à personagem que vê-la paralisada, numa cama de hospital, se torna ainda mais angustiante. Como pode, uma mulher tão ágil, tão empolgada e tão intensa terminar respirando por aparelhos e sem poder mover nada abaixo do pescoço? É um contraste triste demais.
(A propósito: gosto muito, também, de como Eastwood tem uma visão bem direta sobre os arquétipos que passam pela trama. A Ursa Azul, em especial, é uma vilã (sim, vilã) extraordinária precisamente por não ter tons de cinza; ela apenas é uma força da natureza movida pela sede de destruição na base do golpe baixo, pela vontade de esmigalhar sem moral nem ética – notem os sorrisinhos perversos que ela troca com seu empresário antes de massacrar Maggie.)
Ao fim, o destino da boxeadora soa tão cruel, tão antinatural e, principalmente, tão incompatível com o que ela era antes que, para Frankie, a melhor forma de cuidar dela é… libertando-a. O que sobrou para Maggie não é vida. E o que restou a Frankie, como pai, é fazer a vontade da filha (sem aspas) que conquistou no meio do caminho. Não deixa de ser curioso – e apropriado – que a primeira vez que o padre da igreja de Frankie o escuta com um pouco mais de empatia e paciência seja ao tratar do destino de Maggie, de como sobreviver (naquela condição) tornou-se um calvário para ela. Que Maggie parta aos 33 anos é uma reafirmação da crença de seu diretor.
Ele segue devoto à sua fé, mas não vê contradição em admitir que viver do jeito que Maggie vive, no final, é mais castigo do que dádiva. Mais uma vez, Clint Eastwood se mostrando bem mais progressista do que muitos que assim se autoproclamam.