Quando eu tinha oito anos de idade, minha avó enfrentou uma piora significativa no quadro de Alzheimer que terminou por conduzi-la à última etapa da doença. Incapaz de sair da cama, necessitando dos outros para as tarefas mais básicas (ir ao banheiro, comer, etc) e aos poucos desaprendendo a falar, ela olhou para mim um dia, quando fui visitá-la, e perguntou: “Quem é esta menina?”, já tendo apagado por completo qualquer lembrança que tivesse de mim (e me recordo de sermos muito próximos durante minha infância). Foi naquele momento – e ao longo de todo aquele processo de deterioração (psicológica e física) que se arrastou por meses – que percebi (muito cedo) como as demências destroem não só o corpo, mas a identidade de quem o ocupa, como se jogasse fora uma vida inteira de memórias, expondo o indivíduo ao constrangimento por puro sadismo do destino, ao passo que contamina também os familiares e amigos que, tendo que cuidar do paciente, se veem obrigados não apenas a aceitar a perda de um ente querido, mas também a assistir ao processo em câmera lenta.
Assistir a Meu Pai, portanto, foi revisitar tudo isso e perceber, através do exercício de empatia conduzido com maestria pelo estreante Florian Zeller, como era estar dentro de uma consciência que aos poucos se vê ir embora, sentindo na pele a deterioração do corpo, da identidade e, por último, da dignidade de um homem. Adaptado por Zeller e por Christopher Hampton a partir da peça homônima criada pelo primeiro, o filme dedica seus breves, mas pesados 97 minutos a mostrar o dia a dia do idoso Anthony, que, portador de alguma demência (posso supor que seja Alzheimer), conta sempre com a ajuda de sua filha Anne, uma mulher que é constantemente obrigada a abrir mão de seus objetivos e do tempo que poderia passar com o namorado ou aceitando propostas de emprego em prol do bem-estar do pai – que, por sua vez, oscila entre a hostilidade, a ingenuidade, a perturbação e a melancolia (não necessariamente nesta ordem) a cada novo momento, criando uma série de situações que levam o espectador a experimentar a humilhação, o pânico e a tragédia que acometem não só Anthony, mas também Anne.
Uma tragédia que, aliás, Zeller retrata com a segurança que talvez esperássemos de um cineasta com muitos anos de experiência, não de um estreante: empregando os recursos oferecidos pela linguagem cinematográfica com um objetivo que vai muito além de apenas ilustrar o que está no roteiro (e, por consequência, sabendo adaptar o que existia na peça que criou em vez de apenas reproduzi-la com um “teatro filmado”), o diretor demonstra compreender perfeitamente a linha tênue que separa a exploração da desgraça e a ilustração de um problema, jamais soando pedante, egocêntrico ou fetichista em seus esforços de representar cinematograficamente o processo de degradação psíquica trazida pelo Mal de Alzheimer (afinal, se Zeller tivesse um pouco menos de cuidado, as decisões que toma – e que discutirei adiante – provavelmente soariam exibicionistas, como se, numa lógica de parque de diversões, o diretor tentasse usar a doença para mostrar ao público o quanto sabe brincar com a linguagem – o que de forma alguma é o caso).
Assim, ao longo de toda a projeção e entre uma cena e outra, um personagem pode mudar de nome, rosto ou depoimento acerca do que pretende fazer com a vida (aqui, Anne é vivida por Olivia Colman; ali, surge com o rosto de Olivia Williams; uma hora, o namorado de Anne se chama Paul; depois, torna-se Bill; no início, Anne alega com veemência que vai se mudar para Paris; mais tarde, quando Anthony traz o assunto à mesa, ela nega que tenha sugerido se mudar e pergunta “De onde você tirou isso?”), levando Anthony (e, claro, o espectador) à confusão total, a nunca saber ao certo o que de fato aconteceu – e, quando Anne diz que se sentiu mal ao não ser reconhecida pelo pai, não pude deixar de lembrar daquilo que detalhei no parágrafo introdutório.
Enquanto isso, a excepcional montagem de Yorgos Lamprinos (do ótimo Obscuro Barroco) se mostra essencial ao conferir às cenas uma impressão de linearidade, já que muitas destas se repetem em lógica e em diálogos justamente com o intuito de retratar a cronologia quebrada da mente de Anthony – e o fato de Lamprinos trazê-las com fluidez, como se nada estivesse fora do lugar, é o que faz o espectador demorar a perceber demorar a perceber que, sim, está. Já o designer de produção Peter Francis é outro que realiza um trabalho sutil, mas não menos digno de aplausos, “encolhendo” aos poucos o espaço do apartamento que abriga Anthony a fim de refletir sua claustrofobia e reforçando o percurso que conduz Anthony de seu apartamento àquele lugar nos últimos 10 minutos de projeção ao criar uma rima visual trágica entre os dois lugares.
Desta maneira, Meu Pai é hábil ao desmistificar cada detalhe acerca da demência que talvez fuja a quem nunca conviveu com um portador desta, mas que será prontamente identificável por qualquer um que já a tenha visto de perto, desde o fato de Anthony esquecer que a filha foi ao supermercado até as constantes tentativas do sujeito de fingir que está sob controle de si e que o levam apenas ao constrangimento (como na cena na qual tenta conversar com o namorado de Anne sobre seu relógio). Da mesma forma, as situações que se criam ao redor de Anthony tendem a humilhá-lo, já que sua fragilidade ao esquecer-se de coisas básicas do cotidiano (como fazer comida; onde está o relógio; onde foram parar seus quadros; etc) é impossível de disfarças – e, se entendemos por que ele não gosta de ser tratado como criança por seus cuidadores, é porque antes percebemos que ele sabe da posição de vulnerabilidade na qual se encontra (mesmo sem saber como ou por que foi parar nela). Neste sentido, o filme se revela não apenas um retrato de como a demência opera e destrói seus portadores (e os entes queridos ao redor destes), mas um alerta sobre como a sociedade não sabe lidar com eles (aliás, outro longa que discute isso é o ótimo O Agente Duplo, documentário chileno também indicado ao Oscar).
Ainda assim, se há um fator determinante para que Meu Pai me levasse às lágrimas copiosas não só durante, mas cerca de uma hora depois da sessão terminar (eu pensava no filme e já tornava a ficar melancólico), este chama-se Anthony Hopkins, que, aos 83 anos, consegue a proeza de realizar o que talvez seja a melhor performance de toda a sua carreira – e digo isto sabendo que esta carreira já seria impressionante o bastante caso tivesse terminado antes. Longe da imponência física, da personalidade firme e do vozeirão grave que costuma projetar em praticamente todos os seus papeis, Hopkins aqui vive um indivíduo que, através de detalhes (como a postura arqueada e as mãos encolhidas uma à outra), surge pequeno e frágil, como se qualquer coisa ao seu redor fosse capaz de quebrá-lo e estilhaçá-lo por completo – afinal, sua posição vulnerável (física, psicológica e emocionalmente) o coloca como uma figura vulnerável ao mundo que o cerca e que aos poucos desaprende a compreender; numa involução que o leva da vida adulta de volta à infância e que atinge o fundo do poço na última cena do filme. Além disso, o Anthony vivido por Hopkins é um homem que, através de uma sutil mudança de expressão, pode saltar do bom humor (por mais estranho que este soe, em particular, quando sapateia diante de uma garota que o remete à sua falecida filha) a uma violência que, mesmo nem tendo como resultar em nada, é suficiente para partir o coração de Anne.
E, se o faz, é porque Olivia Colman é igualmente bem-sucedida ao estabelecer o amor que Anne obviamente sente e nutre pelo pai, deixando-se despedaçar não (só) pelos insultos e humilhações que recebe dele, mas por saber que estas são, em maior ou menor grau, consequências de algo ainda mais doloroso: a degradação lenta, contínua e acompanhada ao vivo de uma figura que, sim, a ama. E o fato de Anne manter-se ao lado do pai, abrindo mão de tempo, oportunidades e dinheiro para cuidar dele, é uma prova não apenas de inequívoca resiliência, mas também da esperança de que, em algum momento, o bom e velho Anthony retornará – uma esperança que se torna ainda mais triste por ser estimulada de vez em quando (como, por exemplo, quando ele volta a se mostrar carinhoso durante um café da manhã) e, claro, por não tardar a ser novamente quebrada logo em seguida.
O que me traz aos minutos finais da narrativa – e, aqui, recomendo que só prossiga com a leitura quem já tiver assistido ao filme. Mesmo não mostrando o desfecho de Anthony em si, o longa naturalmente nos faz pensar na morte daquele sujeito, já que, afinal, aquela era a última etapa de sua vida. Pois a verdade é que, caso Anthony tivesse morrido antes de toda a história começar, consequentemente ele e sua filha teriam sido poupados de um longo, injusto e humilhante sofrimento. Vir a óbito, pura e simplesmente, teria sido (ao menos, a meu ver), um desfecho mais digno e menos cruel do que passar por todo um processo de apagamento de memórias, vivências e – o mais importante – amores.
E, com isso, o que Meu Pai mostra é que não há espaço para eufemismos ou suavizações quando o assunto é demência. Afinal, o que está em jogo não é um mero “esquecimento”, mas o lento colapso da dignidade de um indivíduo e de todos que o amam à sua volta.