Nomadland é um filme tão intimista, afastado de qualquer megalomania e preocupado com os aspectos mais simples da vida de sua protagonista que chega a ser curioso – e mesmo irônico – que tenha sido distribuído pela Disney. Dedicando seus 108 minutos de projeção “àqueles que tiveram que partir”, como se referem os créditos finais aos nômades que percorrem os Estados Unidos, o novo longa da chinesa Chlóe Zhao (Domando o Destino) pode até usar o estilo de vida da personagem que acompanha para refletir toda a estrutura de uma nação construída nas bases do capitalismo, mas, ainda assim, o que realmente interessa à cineasta é o estilo de vida em si; os pequenos detalhes do dia a dia de quem já se habituou a viver à margem daquela estrutura.
Escrito e dirigido por Zhao, Nomadland não se preocupa necessariamente em contar uma história, com atos bem definidos e conflitos que ajudem a criar uma estrutura narrativa convencional. Em vez disso, o filme se apresenta como uma sequência de pequenos momentos da vida de Fern, uma norte-americana que, após perder o marido e o emprego que a ajudava a pagar as contas, se viu obrigada a embarcar numa van, transformá-la em sua nova casa e viver viajando pelo interior dos Estados Unidos. Assim, do início ao fim da projeção, vemos Fern transitar entre novas cidades, novos empregos temporários e novas amizades que vêm e vão – e, quando reencontra uma velha conhecida no mercado e a filha desta pergunta se ela “Não tem casa”, sua resposta não poderia ser mais apropriada: “Não é que eu não tenha um lar, apenas não tenho casa. Não são a mesma coisa, certo?”.
Embora limitado por uma linguagem que busca imprimir uma estética indie (câmera na mão; cortes secos; planos de paisagens; trilha bonitinha; etc) mesmo que esta já tenha virado fórmula nas mãos de grandes estúdios que a transformaram em pura grife (sim, isto tem tudo a ver com o rótulo de “filme independente distribuído pela Disney”), Nomadland ao menos encontra razões orgânicas para empregar estes elementos, não se resumindo à mera vontade de se vender como um Cinema que pareça “independente”. Interessada em retratar cada detalhe do dia a dia de Fern a fim de desmistificar, por consequência, todo o universo dos nômades em geral, Chloé Zhao é bem-sucedida ao ilustrar, através de uma abordagem seca e frequentemente contemplativa, a realidade daqueles que vivem à beira da estrada, desde as confraternizações que realizam entre si até as gambiarras que fazem para manter suas casas/vans sob controle, passando por visitas a lugares fascinantes da Natureza que o mundo urbano tende a esconder ou tornar menos procurados.
Não é à toa que, do ponto de vista temático, Nomadland se sai bem melhor ao mostrar como certas questões sociopolíticas funcionam na prática do que ao tentar verbalizá-las através de comentários mais escancarados – e, por mais que eu concorde com Fern que “Não faz sentido estimular as pessoas a investirem todas as suas economias e ficarem endividadas para comprar uma casa pela qual não podem pagar”, a discussão em si fica relegada a esta fala isolada e depois nunca mais volta a ser debatida com a mesma veemência. Assim, Nomadland é bem mais eficaz ao ilustrar os danos da crise hipotecária de 2008 quando expõe, por exemplo, como esta levou centenas de milhares de pessoas ao nomadismo. Do mesmo modo, para nos fazer entender a onipresença das grandes corporações e de seus produtos, basta trazer Fern trabalhando como mão-de-obra barata num galpão da Amazon ou indo ao cinema e percebendo que o único filme em cartaz é, ora, Os Vingadores.
Neste sentido, a montagem da própria Chloé Zhao se mostra perfeitamente condizente com a abordagem seca, prática e naturalista que a cineasta propõe, tomando a importante decisão de retratar o nomadismo de Fern ao saltar de um evento/lugar/amigo a outro em rápidas elipses, evitando parar para explicar o que ocorreu no meio-tempo e ressaltando o caráter episódico de cada “etapa” da jornada da protagonista (afinal, vida de nômade é assim: passando constantemente de um ponto a outro como se o tempo pouco significasse). Da mesma maneira, tanto Zhao quanto o diretor de fotografia Joshua James Richards acertam ao capturar as paisagens ao redor de Fern com o objetivo não apenas de criar planos plasticamente memoráveis (embora também o façam), mas de valorizar e ressaltar o contato da protagonista com a Natureza que, distante do caos urbano, tornou-se seu habitat.
Igualmente importante é a presença de Frances McDormand, que, brilhante como de costume, desta vez adota uma composição minimalista, distante de qualquer tique que chame mais atenção para si do que para o papel que encarna. Capaz de transmitir entusiasmo, frustração, melancolia, cansaço, alegria e um turbilhão de outras emoções através de uma sutil mudança de olhar aqui e de um sorriso tímido ali, McDormand converte Fern em uma mulher cuja personalidade interessante, repleta de experiência de vida, torna apenas natural o carinho e o interesse que desperta nas pessoas que a cercam – e a sutileza em sua performance, afinal, condiz totalmente com a abordagem naturalista e sem exibicionismos de Zhao.
Delicado na forma com que constrói as relações entre Fern e as amizades rápidas, mas inesquecíveis que surgem em seu caminho, Nomadland pode não ser um filme fascinante ou que gere uma impressão muito forte, mas, em compensação, é certamente hábil ao despertar no espectador um inequívoco sentimento de afeto pelos personagens que apresenta.