A coisa mais assustadora dessa nova versão de Nosferatu é o temor de que talvez Robert Eggers esteja deixando de ser a voz única e brilhante que era lá atrás para começar a virar um realizador de terror apenas comum e corriqueiro. Se A Bruxa e O Farol eram obras que criavam uma atmosfera tensa e que eram eficientes a ponto de renderem várias imagens/sequências cujo choque nunca mais saiu da minha cabeça, O Homem do Norte já se apresentava como um exercício de vaidade que parecia interessado somente em mostrar ao espectador que o diretor por trás da câmera era capaz de compor um plano bonitinho aqui e um travelling tecnicamente perfeitinho ali – e, dessa vez, todos os momentos de impacto construídos por Eggers tiveram efeito apenas instantâneo, desaparecendo da minha memória assim que a projeção chegou ao fim. Pois o mesmo aconteceu comigo de novo em Nosferatu.
Personagem que se tornou célebre a ponto de ser referenciado em uma penca de outras obras, paródias e animações (até mesmo num episódio de Bob Esponja), Nosferatu foi criado em 1922 pelo alemão F. W. Murnau numa tentativa de adaptar Drácula para as telonas sem ter de pagar os direitos autorais do livro original de Bram Stoker (que tinha morrido 10 anos antes). Assim, Murnau basicamente montou uma história idêntica, mas alterando um ou outro detalhe e, claro, os nomes dos personagens – mesmo que as personas e os arquétipos deles, a rigor, seguissem os mesmos. A maior mudança foi no conceito e no design do vampiro propriamente dito, deixando de lado a inspiração em morcegos e adotando o visual de um rato, com cabeça e orelhas grandes, dedos longos/afiados e dentes incisivos notavelmente pontudos. (Aliás, uns e outros apontam uns traços de antissemitismo na composição de Nosferatu, já que o visual da criatura remete a certos aspectos do estereótipo que se criava acerca do povo judeu e o plano do vampiro, como imigrante do centro-oeste da Europa, é trazer o horror e a peste à Alemanha.)
Não que essas adaptações tenham livrado Murnau de um processo da viúva de Bram Stoker, que exigiu, inclusive, que todas as cópias de Nosferatu fossem retiradas de circulação e queimadas imediatamente. Felizmente, algumas sobreviveram às tentativas de destruição e, com o trabalho de preservação e restauração ao longo das décadas, hoje é possível encontrar o original de 1922 em versões impecáveis (e de graça!) Internet afora. Seja como for, o fato é que o longa de Murnau é uma obra-prima do terror que, compondo uma série de imagens sinistras em sua composição, desperta no público um sentimento de assombro que remete a um pesadelo; aquela coisa que arrepia e amedronta sem que saibamos explicar exatamente por quê. Encarnado por Max Schreck numa performance tão macabra que, na época, rumores levavam muitos a acreditarem que ele de fato era um vampiro (e não apenas um ator maquiado de monstrengo), Nosferatu ainda voltou, em 1979, em uma ótima refilmagem que, sob a direção do colossal Werner Herzog, conferia dimensão nova a todos os personagens (incluindo o próprio Conde Orlock, dessa vez interpretado por Klaus Kinski) e iluminava pontos do original de forma sempre inventiva.
Algo que essa versão de Robert Eggers pouco tenta fazer.
O que não significa que o filme não tenha suas virtudes: propondo um experimento interessantíssimo ao buscarem criar a versão mais preto-e-branco de Nosferatu mesmo se tratando, a rigor, de uma produção colorida (o original de 1922 ao menos tinha os fotogramas pintados de azul, vermelho, amarelo, etc, ao passo que a refilmagem de 1979 despertava tensão a partir justamente de cores intensas e vibrantes), Eggers e o diretor de fotografia Jarin Blaschke (colaborador habitual do cineasta) mergulham a narrativa em sombras, reduzem drasticamente as cores envolvidas em cada cena e diminuem a saturação das que sobraram a um nível tão baixo que, em alguns momentos, a impressão que fica é a de estarmos assistindo a uma obra em preto-e-branco – até que, de repente, um elemento cênico (como uma lareira ao fundo de um cenário, por exemplo) inevitavelmente quebra essa impressão. Em outras palavras: o resultado é um filme tão sombrio que acaba refletindo a condição do próprio Conde Orlock, que suga a vida existente em cada canto por onde passa – e até as sequências que se passam sob a luz do dia contam com uma paleta tão cinzenta que elimina qualquer traço de energia nelas, como se o espírito macabro do vampiro continuasse a ditar a dinâmica visual das cenas mesmo quando o próprio está ausente.
Além disso, a verdade é que o novo Nosferatu é um filme de encher os olhos: não só a direção de arte e os figurinos fazem jus à aura mística e delirante do original de 1922, como a fotografia em si cria vários planos que se destacam por sua composição, usando as sombras quase como “molduras” que isolam ou delineiam personagens e/ou objetos no centro de um quadro (como naquela passagem – belíssima – que envolve o protagonista, Thomas Hutter, e uma carruagem no meio de uma estrada coberta por neve). Elegantes também ao atualizarem sequências marcantes das versões anteriores sob ritmos novos (como a da sombra da mão de Orlock se projetando no seio de Ellen, ou a da silhueta do vampiro subindo as escadas em direção ao quarto da moça), Eggers e Blaschke aproveitam para criar, também, imagens inéditas que se destacam por conta própria, como aquela da mão de Nosferatu encobrindo toda a cidade de Wisburg (que situa a trama).
O problema é que, se plasticamente o novo Nosferatu é uma obra da qual não tenho nada a reclamar, de um ponto de vista narrativo Eggers nunca consegue manter o tom da narrativa sob controle: aqui, ele tenta apresentar o filme como um terror mais sóbrio, que se interessa menos em jumpscares e mais em construir uma atmosfera sinistra que surte um efeito essencialmente psicológico no espectador (aquilo que, de uns anos para cá, uns e outros cismaram em chamar tolamente de “terror elevado”); ali, o diretor busca flertar com um horror mais “frontal”, com jumpscares pontuais, umas imagens graficamente exageradas/grosseiras e umas caracterizações um tanto caricatas (por mais que eu ame Willem Dafoe, não tenho como negar que seu dr. Von Franz – leia-se: o Van Helsing de Nosferatu – é tão cartunesco que destoa totalmente de todo o resto). Por consequência, o longa termina em um “semitom” que nunca se define bem – e, como se não bastasse, as pouquíssimas tentativas de trazer algo inédito à história (como os detalhes novos sobre a relação entre Orlock e Ellen) também não funcionam muito, servindo apenas para tornar a trama inchada e confusa.
Mas a maior decepção de Nosferatu, por incrível que pareça, é… o próprio Nosferatu. Se as excelentes versões de Max Schreck e Klaus Kinski traziam, em suas expressões (ou tons de voz, no caso de Kinski), alguma coisa (temor, pesar, melancolia, etc) que conferisse dimensão ao Conde Orlock e o fizesse soar como algo mais do que um mero bicho-papão, essa interpretação de Bill Skarsgård se revela apenas uma criatura monotônica e desinteressante que em nada se difere de qualquer outro monstrengo genérico que já vimos aos montes por aí, limitando-se a fazer cara de bravo, falar devagar, mas empostado, e… só. Também não ajuda muito o fato de o visual desse novo Nosferatu não ser dos mais criativos, adicionando um bigode e um cabelinho que podem até fazer sentido considerando-se a proposta de Eggers (resgatar a aparência do empalador Vlad Tepes, figura histórica real que inspirou Bram Stoker na hora de criar Drácula), mas que, em termos de design, resultam em algo pouco marcante e fácil de esquecer.
Com um desfecho que soa estúpido ao escancarar, de forma óbvia e preguiçosa, a analogia por trás do vampiro e o real sentido de “sugar o sangue” das vítimas (quem viu saberá do que estou falando), o Nosferatu de Robert Eggers não chega a ser um filme ruim – mas que isso seja o melhor que posso dizer sobre o novo trabalho de um diretor que, no começo de sua carreira, se firmou como uma voz única e promissora dentro de um gênero cada vez mais saturado é frustrante por si só.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: