O Brutalista é um filme que tem certeza absoluta de que é uma obra-prima, mas que, na verdade, nem a quilômetros de distância é tudo isso. Em vez disso, é um longa apenas correto que, no entanto, aspira a uma escala épica que o diretor Brady Corbet jamais consegue alcançar (algo que já tinha ocorrido em menor grau em seu trabalho anterior, Vox Lux) e, para piorar, leva o espectador a chegar ao fim da projeção com a sensação de ter acompanhando uma narrativa perdida, que nunca sabe exatamente do que quer tratar e que tenta esconder esta indecisão se impondo por uma suposta “grandiosidade”.
Escrito pelo diretor Brady Corbet e por sua companheira, Mona Fastvold, O Brutalista gira em torno de Lásló Tóth, um arquiteto húngaro que, judeu, passou os últimos anos sobrevivendo ao Holocausto, sendo separado da esposa Erzsébet e da sobrinha Zsófia (ambas mandadas ao campo de concentração de Dachau). Chegando a Nova York em 1947, Lásló embarca num ônibus e parte para a Filadélfia, na Pensilvânia – que, por sua vez, um dos estados que compõem o “Cinturão da Ferrugem”, berço da industrialização estadunidense –, na tentativa de levar uma vida de operário. Tudo muda, porém, quando o caminho do ex-arquiteto se cruza com o do empresário Harrison Lee Van Buren, que, impressionado com os trabalhos de Lásló, logo o convida para coordenar o ambicioso projeto de um centro comunitário gigantesco, envolvendo livraria, teatro, academia e uma capela – um projeto que o protagonista executará adotando um estilo fortemente calcado no brutalismo, que surgiu na Europa no pós-guerra.
A propósito: Lásló Tóth é uma figura totalmente fictícia, criada do zero para este longa, o que, de certa maneira, faz de O Brutalista uma espécie de “cinebiografia” sobre um biografado irreal.
Aparentemente interessado em refletir a ambição e a escala grandiosa do projeto comandado pelo próprio Lásló, já que o filme em si aspira a tons épicos em uma narrativa que dura três horas e meia (com duas metades, um intervalo de 15 minutos e um epílogo) e que começa em 1947 para só terminar em 1980, O Brutalista é uma obra que parece ter muito a dizer – e, se digo “parece”, é porque Brady Corbet tenta abarcar uma penca de premissas distintas sem conseguir dar conta de todas: afinal, é uma biografia sobre Lásló Tóth? É um filme sobre as inspirações e impulsos artísticos do arquiteto? Sobre os traumas do Holocausto? Sobre a relação trágica entre o protagonista e sua esposa? Sobre a dinâmica de exploração entre patrão e trabalhador? Sobre a construção do “sonho americano” (ou sobre a desconstrução deste)? Sobre o brutalismo propriamente dito? Ou é, na verdade, uma grande peça de propaganda sionista (voltarei a isso adiante)?
A resposta para todas as perguntas é: O Brutalista tenta ser sobre todas estas questões ao mesmo tempo e, para isso, adota uma duração considerável de 215 minutos achando que, com todo este tempo à disposição, dará cabo de todas estas problemáticas – e não dá. A cada momento, o roteiro de Corbet assume uma nova premissa como se fosse o centro narrativo/temático do longa como um todo, mudando de foco quase que a cada cena – e, se a primeira metade da história consegue manter um mínimo de foco e equilíbrio entre os diferentes pontos de discussão que o roteiro introduz, a segunda se revela uma bagunça tão generalizada que leva o filme inteiro a desabar, trazendo para o centro outros três/quatro dramas enquanto tira da cartola mais cinco/seis conflitos (entre personagens) que nem sempre se conversam.
O resultado é que, ao longo de três horas e meia, O Brutalista vai acumulando tantos assuntos/premissas/tópicos que acaba não conseguindo se debruçar, com a profundidade desejada, em nenhum deles, encontrando resoluções frouxas para cada um (o desfecho da trama envolvendo o sr. Van Buren nos anos 1950, por exemplo, é amarrado de forma apressada e confusa, jogando pistas aleatórias – sobre o que teria acontecido ao personagem – na esperança de que o espectador encontrará alguma liga entre elas). Assim, a sensação que O Brutalista deixa, ao fim, é a de… incompletude – e, que esta seja a impressão causada por um filme que teve 215 minutos para se desenvolver, é imperdoável. Além disso, quando uma suposta “biografia” chega ao fim precisando criar um epílogo que explique, de modo rápido e mastigadinho, quem foi o biografado e por que foi tão importante, é um sinal de que em alguma coisa ela fracassou feio.
Aliás, se geralmente as pessoas têm preguiça de filmes com extensas durações por acharem que serão “chatos”, “lentos” ou “tediosos”, em O Brutalista ironicamente o que ocorre é o oposto: a história é contada num ritmo tão apressado que as passagens de uma cena/época à outra tornam-se abruptas, não concedendo ao espectador o tempo preciso para processar o drama do que ocorreu e/ou o peso da passagem dos anos em si – e, em vários momentos, a montagem de Dávid Jancsó corta de uma passagem para a outra de forma tão súbita que a minha reação espontânea foi a de “Como assim? O que foi isso? Já se passou isso tudo de tempo?!”. E se uns podem defender o ritmo abrupto da montagem dizendo que se trata de uma escolha formal consciente, numa aplicação do brutalismo propriamente dito, parte de mim concorda que se trata de uma decisão interessante (e que tem tudo a ver com a proposta da obra), mas outra também enxerga isso como desculpinha do filme para poder ser superficial e corrido, usando a forma e o estilo como escudo anti-críticas.
Por falar em forma e estilo, O Brutalista é um projeto que, claro, chama bastante atenção por seus valores técnicos e de produção – a começar pela decisão de Corbet e do diretor de fotografia Lol Crawley em resgatar o VistaVision, numa bitola de 70mm, apelando a recursos analógicos (e, no caso, há décadas deixados de lado) em tempos em que o digital vem cada vez mais ditando a regra*. Pena que, na prática, estes recursos acabem subutilizados pelo filme, já que Corbet sempre os emprega de maneira ou muito básica (uma vez que a maioria das cenas de diálogos se limitam a plano/contraplano ou quadros estáticos e fechados que não condizem com esta escala supostamente tão grandiosa que o diretor tenta reivindicar), ou muito óbvia (convenhamos que câmera na mão com o propósito de gerar tensão a esta altura se tornou um recurso tão manjado que, em casos como este aqui, já ficou chato).
Assim, embora o trabalho de Lol Crawley seja inteligente na forma com que usa a paleta fria para compor o universo de Lásló e as sombras para envolvê-lo em um clima de desalento constante (mesmo em cenas em que os tons quentes se fazem presentes – seja pela luz do dia, pela iluminação interna ou por uma lareira acesa ao fundo –, estes de certo modo são “engolidos” pela frieza total do todo, impedindo qualquer traço de intensidade de se criar ali), a verdade é que O Brutalista não é uma obra visualmente tão ambiciosa ou interessante quanto acredita ser. Em compensação, os figurinos de Kate Forbes e a direção de arte de Judy Becker são fantásticos na recriação dos anos 1940 e, melhor ainda, na demarcação das diferenças de classe entre Van Burren e Lásló Tóth, com o primeiro bem mais elegante e arrumadinho enquanto o segundo quase sempre surge mais surrado (ou, no mínimo, menos requintado). Da mesma maneira, o trabalho de maquiagem impressiona no modo com que ilustra a fome e o estado degradado de Lásló e a condição de sua esposa, Erzsébet, dominada por osteoporose.
Mas é claro que O Brutalista não funcionaria da mesma forma se o elenco por trás dos personagens não fizesse jus às expectativas, sendo um alívio que, de modo geral, todos surjam em performances eficazes. (Aqui cabe um adendo: não pretendo me aprofundar na polêmica – da qual todos já ouviram falar – sobre o uso de inteligência artificial para “aprimorar” o sotaque húngaro de Adrien Brody, já que sou incapaz de precisar em quais momentos de sua atuação a I.A. entrou em ação. Até porque, sejamos francos, a esta altura provavelmente já assistimos a uma penca de outras produções nos últimos dois anos em que o software em questão foi empregado e nem ficamos sabendo. Tudo que posso dizer é baseado no que vi do ator em tela.) Encarnando um tipo de papel que a Academia adora premiar (um sujeito ambicioso, mas cheio de traumas e feridas da opressão, Brody se sai notavelmente bem ao retratar não só as dores de Lásló (às vezes adicionando à voz, às mãos e à expressão um tremor discreto, mas suficiente para trazer todo um peso aos momentos específicos em que é utilizado), como também suas pretensões e mesmo sua arrogância à medida que recupera (ou acredita recuperar) um mínimo de dignidade ao chefiar o projeto que assumiu.
Já Felicity Jones faz o que pode com uma personagem cujo arco é justamente o que mais enfraquece e tira o foco da narrativa, saindo-se razoavelmente bem ao retratar o sofrimento e trazer peso e intensidade a Erzsébet. No entanto, quem mais se destaca em O Brutalista é mesmo Guy Pearce, que compõe Van Burren como um magnata que, mesmo apresentado num momento de explosão inequívoca, aos poucos envolve através de uma retórica aparentemente afável e respeitosa. Capturando e explorando até o tutano do osso cada funcionário que lhe presta serviço, o patrão faz isso menos com gritos de ordem e mais com falas mansas, sorrisos e gestos “simpáticos”, o que serve para torná-lo ainda mais perigoso e imprevisível. Aliás, é justamente por isso que soa meio tonto que, nos 45 do segundo tempo, o filme resolva transformar Van Burren num monstro mais explícito através de uma cena que manterei em sigilo a fim de evitar spoilers, mas que peca por eliminar as sutilezas e os tons de cinza que vinham tornando o personagem tão fascinante.
No fim das contas, se O Brutalista funciona de alguma forma, em boa medida se deve ao drama que Brady Corbet consegue encontrar aqui ali, em meio a alguma situação mais forte ou a algum gesto/fala dos personagens que acaba revelando uma convincente humanidade a seu respeito (quando Van Burren se senta para conversar com Lásló Tóth e lhe mostra várias fotos das maravilhosas construções que arquitetou em sua terra natal, a reação do protagonista ao dizer “Eu não sabia que estas imagens ainda existiam nem que significavam algo para alguém”, por exemplo, me acertou em cheio. Além disso, tem um ou outro momento isolado entre Lásló e Erzsébet que funciona ao ilustrar o amor incondicional que ambos se recusaram a deixar de nutrir – mesmo com a distância e as atrocidades todas que lhes foram impostas.
Dito isso, é precisamente aí que entra um ponto de O Brutalista que requer uma atenção mais delicada: há, sim, conotações de um discurso sionista salpicadas pelo roteiro de Brady Corbet e Mona Fastvold. Iniciando-se em 1947, no pós-Segunda Guerra, o filme já começa martelando numa narração em off a importância da fundação do Estado de Israel (que se deu no ano seguinte). À medida que a trama avança e o sonho de Lásló de ser aceito nos Estados Unidos (e de alcançar o tal “sonho americano”) aos poucos vai por água abaixo, ocasionalmente surgem diálogos entre o protagonista e sua esposa discutindo a necessidade de ir para a terra deles, voltando para o único lugar do mundo em que se sentirão em casa.
Claro que o filme apresenta esta questão – e define Israel como a única solução para os personagens – sem levar em conta o pequeno detalhe de que a mera expansão daquela terra (de 1948 para cá) ocorre necessariamente às custas do massacre e do apartheid impostos sobre o povo palestino que há séculos se firmou naquela região, promovendo um processo de limpeza étnica contra a população árabe que se encontra naquele território. Ora, vão me desculpar, mas por mais que Brady Corbet tente introduzir este tópico como se nada mais fosse que um sonho meio idealista de Lásló e Erzsébet, não dá para fingir que o diretor seja inocente ou que nunca tenha ouvido falar no genocídio em curso por lá.
Que O Brutalista se preste a este discurso (mesmo que de forma salpicada), ainda mais agora que a situação chegou em seu ponto mais crítico, é algo que só ajuda a terminar de derrubá-lo por completo.
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* O discurso tecnicista da obra – de querer reviver o analógico como se este fosse o Cinema em estado puro – entra em contrassenso quando descobrimos que os realizadores utilizaram inteligência artificial a rodo na concepção visual do longa? Sim, claro, mas… enfim, o que importa para a análise mesmo é que o filme foi rodado em modo analógico.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: