Por mais que seja um ícone da cultura pop desde 1938 e tenha protagonizado, 40 anos depois de sua criação, um filme que ainda hoje se posiciona como um dos melhores já produzidos sobre super-heróis, o Superman não é um personagem tão popular quanto o Batman, por exemplo. Geralmente encarado como um personagem sem graça e cuja bondade chega a ser anacrônica, o kryptoniano é dono de habilidades especiais tão poderosas que podem eliminar boa parte da tensão que deveria existir em suas aventuras – e, por conta disso, muitos simplesmente acabam não se importando com o herói, já que, a princípio, nada poderia ameaçá-lo. Dito isso, é admirável que O Homem de Aço, recomeço da franquia depois do mediano Superman: O Retorno, consiga tornar o personagem emocionalmente vulnerável e, por consequência, mais interessante – mesmo que o filme em si não deixe de trazer problemas consideráveis e, às vezes, decepcionantes.
Roteirizado por David S. Goyer (Batman Begins) a partir dos quadrinhos criados por Jerry Siegel e Joe Shuster, O Homem de Aço começa nos apresentando a Krypton em suas últimas horas de existência, mostrando o cientista Jor-El alertando os líderes políticos da civilização sobre a destruição iminente do planeta, ao passo que o general Zod os condena por terem dado início ao desastre. Sabendo que não há como salvar a população, Jor-El decide enviar seu recém-nascido filho, Kal-El, à Terra – e, enquanto isso, Zod é preso junto a seus asseclas e enviado à Zona Fantasma. Com isso, ao pousar no interior do Kansas, o bebê kryptoniano é encontrado e acolhido pelo casal Jonathan e Martha Kent, sendo rebatizado de Clark. Quase três décadas se passam e o menino, agora crescido, viaja pelo mundo em busca de respostas sobre quem realmente é, obrigando-se a conter seus superpoderes até que estes tornem-se necessários. Contudo, a vida de Kal-El sofre uma reviravolta quando Zod retorna e exige que os terráqueos lhe entreguem o protagonista.
Trata-se, portanto, de uma história de origem clássica, o que tende a soar dispensável quando consideramos que todo mundo já conhece Superman. Ainda assim, o diretor Zack Snyder (300; Watchmen; Sucker Punch) surpreende ao envolver uma narrativa tão previsível e batida em uma embalagem nova – o que pode ser constatado ainda nos minutos iniciais do longa, quando nos deparamos com uma Krypton bem diferente do planeta frio e cristalino que Richard Donner nos apresentou em 1978, com direito a intrigas políticas, figurinos criativos e até mesmo criaturas animalescas (mérito também do designer de produção de Alex McDowell). Passado este prólogo (que dura cerca de 30 minutos), Snyder passa a desenvolver a jornada de Clark Kent com extrema paciência, tomando, junto ao montador David Brenner, uma decisão que poderia resultar em fracasso, mas que acaba se revelando eficaz: contar a história de forma não linear, “interrompendo” o presente de Kal-El com vários flashbacks que reforçam as lições aprendidas por ele no passado, agilizando o ritmo da narrativa.
E já que citei o desenvolvimento do protagonista, seria impossível discutir uma produção estrelada por Superman sem abordar seu principal aspecto: o próprio. Trabalhado pelo roteiro como um indivíduo situado num ambiente nem um pouco propício, Kal-El é tratado aqui como um verdadeiro peixe fora d’água, uma peça que claramente não se encaixa no tabuleiro – e o fato de possuir superpoderes capazes de dizimar populações inteiras obriga o personagem a conter suas próprias naturalidades, pois expô-las para o mundo acabaria com questionamentos a respeito da existência de vida extraterrestre e abalaria até mesmo crenças religiosas e/ou culturais. O que nos traz, é claro, ao desempenho de Henry Cavill: ainda que seja um pouco careteiro e não chegue aos pés de Christopher Reeve (o que, verdade seja dita, já era de se esperar), o ator acerta ao transmitir confiança e vulnerabilidade emocional a Clark Kent, vivendo o herói com uma certa dose de amargura e soando igualmente convincente nos raros momentos em que consegue adicionar alguma felicidade ao personagem (a alegria que sente ao voar pela primeira vez chega a ser contagiante).
Da mesma forma, Russell Crowe encarna Jor-El como um indivíduo experiente e cheio de conhecimento para transmitir (ainda que o fato do personagem aparecer em excesso acabe eliminando o peso dramático de sua morte), ao mesmo tempo em que Kevin Costner traga por natureza um aspecto de “homem comum” que serve perfeitamente para o papel de Jonathan Kent. Já Michael Shannon deixa de lado a excentricidade gritante de Terrence Stamp em Superman 2, retratando Zod como um vilão complexo e cujas motivações não justificam sua crueldade condenável (embora seus gritinhos e explosões de raiva sejam meio irritantes), ao passo que Lois Lane acaba se transformando em um problema por causa não do desempenho de Amy Adams (que é razoável), mas da maneira equivocada com que o roteiro a desenvolve.
Infelizmente, os problemas de O Homem de Aço começam ainda no segundo ato: assim que o roteiro deixa de lado a jornada de Clark Kent para se focar na ameaça de Zod, o filme de repente passa a se preocupar mais com a ação desenfreada e impede que o protagonista continue a “crescer”. (Os próximos dois parágrafos trarão spoilers!) Percebam, por exemplo, como os conflitos internos do herói ganham uma resolução superficial: depois de passar a vida inteira aprendendo que jamais deve exibir seus superpoderes em público nem usá-los para o bem alheio, Clark simplesmente decide se tornar o salvador da humanidade… depois que Jor-El lhe dá a permissão de fazer isto. Simples assim.
Aliás, o roteiro de David S. Goyer sempre parece acreditar ser mais inteligente do que realmente é, se embolando cada vez mais em ideias e criando um monte de incongruências. Como um uniforme projetado especificamente para Kal-El, que nasceu há 33 anos, pode estar guardado numa nave há milênios? Se Kal-El passou a vida sem treinar seus poderes, como conseguiu bater de frente com militares kryptonianos que nasceram para desempenhar tais funções? Por que Zod exige que Lois Lane entre em sua nave quando apenas Superman era necessário? Para completar, o projeto ainda traz um desfecho que não faz sentido algum de acordo com tudo que foi visto nas mais de duas horas anteriores (como Clark conseguiu se tornar jornalista do Planeta Diário se o filme não havia demonstrado qualquer indício de que o personagem era capacitado para desempenhar tal função?). E afinal, como diabos Lois Lane consegue estar convenientemente em todos os lugares nos quais o protagonista se encontra?!
Como se não bastasse, Zack Snyder ainda peca ao estender demais a duração das sequências de ação: sim, a batalha ocorrida em Smallville empolga tanto quanto o confronto final entre Superman e Zod; o problema é que, entre estes dois momentos, há cerca de 30 minutos nos quais a tela é ocupada por um amontoado de destruições repetitivas em Metrópolis (e a situação se torna ainda mais estranha quando consideramos que o herói basicamente contribuiu, mesmo sem querer, para que a cidade fosse obliterada). Além disso, é mais fácil acreditar num humanoide que voa, dispara raios pelos olhos, enxerga através de uma visão de raio X, congela o que está à sua volta através de sopros e tem superforça do que numa cidade que sofre uma devastação incalculável e, no dia seguinte, já volta a funcionar tranquilamente, como se milhares de vidas não tivessem se perdido.
Não exibindo um pingo de sutileza ao criar suas metáforas bíblicas (a sequência passada numa igreja, em especial, chega a ser constrangedora neste sentido), O Homem de Aço ao menos é beneficiado pela boa trilha de Hans Zimmer, que se distancia corajosamente das icônicas composições assinadas por John Williams a fim de buscar uma identidade nova. E é bom ser lembrado de como o Superman pode, sim, ser um herói bem mais interessante e profundo do que as pessoas costumam imaginar. Só resta torcer para que, da próxima vez, usem a mesma dedicação para construir um roteiro um pouco mais coeso e menos desesperado quanto à ação.