Irlandês

Título Original

The Irishman

Lançamento

27 de novembro de 2019

Direção

Martin Scorsese

Roteiro

Steven Zaillian

Elenco

Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci, Ray Romano, Bobby Cannavale, Anna Paquin, Stephen Graham, Harvey Keitel, Stephanie Kurtzuba, Kathrine Narducci, Welker White, Jesse Plemons,

Duração

209 minutos

Gênero

Nacionalidade

EUA

Produção

Martin Scorsese, Robert De Niro, Jane Rosenthal, Emma Tillinger Koskoff, Irwin Winkler, Gerald Chamales, Gastón Pavlovich, Randall Emmett e Gabriele Israilovici

Distribuidor

Netflix

Sinopse

Conhecido como “O Irlandês”, Frank Sheeran (Robert De Niro) é um veterano de guerra cheio de condecorações que concilia a vida de caminhoneiro com a de assassino de aluguel número um da máfia. Promovido a líder sindical, ele torna-se o principal suspeito quando o mais famoso ex-presidente da associação desaparece misteriosamente.

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O Irlandês | Crítica

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A ideia de morte é algo que nos persegue desde sempre – não é à toa que, a esta altura do campeonato, é até clichê dizer que a única certeza que temos ao longo de nossa vida inteira é a de que, um dia, ela acabará. No entanto, por mais que o fim de nossas existências seja motivo de contemplação constante, a maneira como pensamos nele obviamente varia de acordo com a nossa experiência e, principalmente, com o tempo que já passamos aqui. Na infância, a morte costuma assumir uma conotação apavorante; na juventude, ela soa como uma tragédia, como a interrupção de um caminho que ainda tinha muito a ser percorrido; na fase adulta, ela assume uma iminência maior; na velhice, ela já começa a soar como algo mais presente, como algo que já está bem ali na esquina e que está pronto para vir de forma mais… natural. Ou, pelo menos, é o que ouço falar de pessoas que já chegaram a este estágio da vida – eu, aos 21 anos, sou incapaz de saber exatamente como a morte é encarada por quem chegou aos 80, por exemplo.

Ou aos 77, no caso de Martin Scorsese. Dono de uma filmografia extensa, ambiciosa e incrivelmente variada (seu currículo inclui estudos de personagem, filmes de gângster, comédias, documentários, registros de shows, histórias bíblicas/religiosas, dramas de época e até mesmo uma aventura voltada para crianças), o cineasta há muito cravou seu nome entre os grandes da profissão – e muito disso se deve ao fato de ser talvez um dos maiores especialistas em Cinema que existem, o que lhe possibilitou, inclusive, viajar o mundo com um projeto de preservação e restauração de clássicos perdidos de vários países. Como ser humano, porém, Scorsese parece ter chegado a uma fase de intenso autoquestionamento, refletindo a respeito de quem ele foi ao longo de toda a vida, o que conquistou como profissional durante todas estas décadas e – não menos importante – como a ideia de morte lhe soa agora que está muito mais próxima do que estava há, digamos, 30 anos.

O Irlandês é um filme que ilustra todas as estas questões – e, embora não seja o epitáfio de Scorsese (ele já tem outro projeto em pré-produção), não seria absurdo se fosse. Aliás, se trata de uma obra que o cineasta naturalmente não teria como realizar nas décadas passadas, pois lhe faltava experiência, repertório e vivência para isso. Em outras palavras: é um belíssimo exemplo de como a Arte diz muito sobre o artista nos diferentes estágios de sua vida.

Baseado no livro I Heard You Paint Houses, publicado pelo advogado e investigador Charlie Brandt em 2003, o roteiro de Steven Zaillian (A Lista de Schindler; Missão: Impossível; Millennium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres) se concentra em Frank Sheeran, um condecorado veterano da Segunda Guerra que passou a trabalhar como caminhoneiro nos anos seguintes. Tudo muda, no entanto, quando ele conhece o mafioso Russell Bufalino, de quem se torna colega íntimo e que eventualmente o transforma em cobrador/assassino da Máfia nova-iorquina. Mas não é só: Bufalino, por sua vez, apresenta Frank ao renomado Jimmy Hoffa, presidente do sindicato nacional de caminhoneiros (os Teamsters). Aproximando-se cada vez mais do protagonista, Hoffa o eleva a líder sindical – e seu destino… bem, quem conhece a história real talvez já tenha uma noção, mas mesmo assim vou manter em sigilo aqui.

Mostrando-se estruturalmente épico e ambicioso ao encobrir cerca de cinco décadas da vida de Frank Sheeran, O Irlandês se desenrola ao longo de nada menos que três horas e meia de projeção – o que, à primeira vista, pode parecer meio assustador. No entanto, Scorsese e a montadora Thelma Schoonmaker se mostram hábeis o suficiente para conferir ritmo e velocidade a uma narrativa que tinha tudo para incomodar em função de sua extensa duração, alcançando um resultado que, de certa maneira, faz jus à forma como enxergamos a passagem do tempo e a vida em si: é longo, porém ligeiro e dinâmico; quando chegamos ao final e analisamos a obra inteira em retrospecto, sentimos que de fato acompanhamos uma vida inteira ao longo de 209 minutos, mas a jornada como um todo foi tão breve e efêmera quanto… a própria trajetória humana. Neste sentido, a maquiagem empregada para envelhecer Robert De Niro e Joe Pesci se revela não apenas tecnicamente impecável, mas também fundamental para que o espectador sinta as décadas que se acumularam nas costas dos personagens – o mesmo se aplica aos impressionantes efeitos visuais adotados para rejuvenescê-los digitalmente, já que estes se fazem presentes na maior parte do tempo e soam naturais na maioria de seus esforços, nos convencendo de que estamos diante dos jovens De Niro e Pesci (se eu fosse membro da Academia, não hesitaria em votar neste filme para a categoria de Melhores Efeitos Visuais).

Não menos importante é o trabalho do designer de produção Bob Shaw, que, também refletindo a passagem do tempo através de seus esforços (saindo das arquiteturas, dos veículos e dos objetos de cena típicos dos anos 1950 e saltando de década em década sem se esquecer da evolução de cada um destes itens), se sai igualmente bem ao ilustrar as diferenças notáveis entre as ambientações e ao contrastá-las de acordo com as condições socioeconômicas de cada ocupante: se a casa de Frank Sheeran é pequena e apertada, os lugares visitados por Jimmy Hoffa se mostram bem mais elegantes e grandiosos em suas concepções (desde os palanques nos quais discursa em comícios até os vastos campos de golfe nos quais aparece em dado momento). Ao mesmo tempo, a fotografia de Rodrigo Prieto desempenha um papel fundamental ao reconhecer que uma história como esta exige não uma abordagem glamourosa, mas uma que justamente elimine todo o charme prometido pelas locações e mergulhe a projeção inteira em cores mais sóbrias, oscilando principalmente entre tons cinzentos e amarronzados (até Havana tem seu esplendor sugado aqui). Isto, claro, acontece com um objetivo: refletir a deterioração da alma do próprio Frank Sheeran, que enxerga o mundo não como algo colorido e bonitinho, mas como um lugar cuja alegria há muito foi substituída pela mais pura frieza.

Sim, porque O Irlandês é uma obra que discute – entre outras coisas – a deterioração da alma; a vida de Frank, de modo geral, foi degradante e cercada de dores e tragédias motivadas justamente pelas escolhas tomadas por ele mesmo. E Scorsese segue isso de perto em sua abordagem, sendo notável que até os momentos mais bem humorados do filme (e estes são bem mais frequentes do que eu imaginava) tragam consigo um ar fúnebre inquestionável – um exemplo perfeito disso encontra-se nas legendas que surgem enquanto certos personagens estão falando e que explicam para o espectador como estes mesmos indivíduos viriam a morrer no futuro (algo que serve como piada, mas também provoca o incômodo ao nos lembrar do destino daquelas pessoas). Ainda assim, é notável a forma como Scorsese encara o drama das escolhas infelizes de Frank Sheeran: dedicando o primeiro ato inteiro a apenas mostrar para o público o que exatamente levou o protagonista a mergulhar de cabeça no mundo do crime, o cineasta deixa bem claro como o modus operandi de Frank sempre foi bruto, sanguinário e propenso à violência, tornando natural a transição que o levou de “caminhoneiro pacato” a “mafioso assassino” – neste sentido, ele se estabelece como um contraponto perfeito ao Henry Hill vivido por Ray Liotta em Os Bons Companheiros, que, mesmo sonhando em se tornar um gângster desde pequeno, ainda se vê frequentemente dividido entre aquilo que julga certo e aquilo que é imoral.

O que nos traz a um dos elementos centrais de O Irlandês: a brilhante performance de Robert De Niro – que, infelizmente, será subestimada por muitos em função da sutileza em sua composição. Retratando Frank Sheeran como um indivíduo surpreendentemente pacato e estável, De Niro cria um contraste perfeito entre a barbárie que marca as ações do protagonista e tranquilidade presente em seus gestos até nos momentos mais urgentes da narrativa. Assim, embora a violência esteja sempre presente nos métodos de Frank (em certo instante, ao saber que sua filha está sendo maltratada por um lojista, ele vai até o estabelecimento e espanca o sujeito na frente da garota), é notável a calmaria presente tanto em seu tom de voz quanto em sua postura corporal, o que serve para ilustrar o quão acostumado ele está à sua rotina. Por outro lado, De Niro também é hábil ao encarnar as dores que se acumulam nas costas de Frank ao longo de tantas décadas – e, quando chega ao terceiro ato, se mostra perfeitamente capaz de expressar não só as fragilidades físicas que a idade trouxe ao personagem, mas também o sofrimento interno que resultou de todas as más escolhas que fez no decorrer de sua vida.

Mas O Irlandês, claro, não é composto apenas por Robert De Niro, trazendo outros rostos conhecidos que também atuaram em alguns dos “filmes de Máfia” mais célebres já produzidos – neste sentido, o longa soa como uma verdadeira reunião de alguns dos maiores ícones do gênero, não sendo à toa, por exemplo, o fato de Scorsese filmar a primeira conversa entre Frank Sheeran e Jimmy Hoffa sabendo se tratar de um momento especial (afinal, estamos vendo Robert De Niro e Al Pacino dividirem uma mesma conversa!). Hoffa, por sua vez, também é interpretado por Pacino como um sujeito ambíguo e cheio de nuances que podem parecer contraditórias, mas que tendem a torná-lo ainda mais interessante: sim, ele tem plena consciência do quanto é influente e inescrupuloso, assumindo um comportamento frequentemente bruto e impulsivo em razão disso – em contrapartida, a maneira como interage com seus familiares e até com alguns de seus amigos denota uma cordialidade notável de sua parte, ao passo que seu gosto por sorvetes pode até ser um detalhezinho pequeno, mas que contribui para que o personagem pareça mais… humano. E, para fechar o trio, Joe Pesci vai na contramão da imagem turrona, agressiva que construiu em Touro Indomável, Os Bons Companheiros e Cassino (o que, por si só, representa uma quebra de expectativa magnífica), transformando Russell Bufalino quase (ênfase no “quase”) num fiel da balança no meio de personas tão explosivas.

Ainda assim, tudo em O Irlandês nos traz de volta a Frank Sheeran, o protagonista inquestionável desta história. Um cara que, como falei anteriormente, não tinha como não ser induzido a uma vida de crimes e não se transformar em um monstro. E é claro que sua natureza não poderia resultar em mais nada a não ser em dor, sofrimento e arrependimento não só para ele, mas para as pessoas ao seu redor. (A partir daqui, sugiro que só prossiga com a leitura quem já tiver assistido ao filme.) As escolhas que Frank tomou ao longo de sua existência, portanto, destruíram até mesmo aquilo que ele buscou cultivar com um mínimo de afeto – em particular, sua relação com as filhas, cujo desmoronamento é simbolizado de forma definitiva (e cruel) na última cena de Anna Paquin. Assim, ao longo de sua meia hora final, O Irlandês atira o espectador no meio da rotina de um senhor que sabe que a morte está logo ali e que sente não só o peso das consequências de tudo que fez ao longo de seus 83 anos de vida, mas também uma culpa que, de certa maneira, condiz com a tradição católica que Scorsese abordou com tanta frequência em sua carreira. Se o Céu existir, certamente não será o destino de Frank Sheeran – e ele sabe disso.

E é interessante que Scorsese não se preocupe em mostrar o fim do protagonista, preferindo, em vez disso, sugeri-lo (o que já é impactante o suficiente). No primeiro ato, por exemplo, há um longo travelling que passeia por um corredor e que mantém o espectador longe dos sons de tiros que imediatamente irrompem no cenário, culminando em uma volta para o ponto inicial do plano e apresentando os cadáveres dos que acabaram de ser baleados. Mas aí, nos segundos finais da projeção, Scorsese filma um plano parecido: um travelling começa em Frank, se distancia dele e começa a passear por um corredor similar ao primeiro – a diferença, no entanto, é que quando o espectador começa a acreditar que a câmera voltará para o ponto inicial e nos mostrará o cadáver do protagonista, isto não acontece. Assim, o plano em questão deixa de servir apenas como uma rima visual e se torna também uma forma de quebrar nossas expectativas.

Sim, a morte de Frank provavelmente veio pouco depois disso – mas Scorsese não precisou mostrá-la para nos fazer senti-la. O que precisou mostrar, na verdade, foi uma imagem que talvez seja ainda mais triste e deprimente do que a de um corpo caído no chão: a de um velhinho abandonado num quarto com a porta entreaberta. Ao contrário de Michael Corleone, que terminava o primeiro O Poderoso Chefão batendo a porta na cara de sua amada numa clássica demonstração de desprezo, Frank Sheeran entendeu o que é desprezo sem precisar fechar porta alguma.

Assista também ao vídeo (SEM spoilers) que gravei sobre o filme:

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