“Meu pai era a cabeça da casa e a minha mãe, o coração.”
Esta fala pertence a um dos maiores vencedores do Oscar de Melhor Filme da história da premiação: Como Era Verde o Meu Vale, dirigido pelo lendário John Ford em 1941 (a partir do best-seller publicado por Richard Llewellyn em 1939) e que girava em torno das memórias do protagonista Huw Morgan, que, através de uma narração em off, relembrava a infância com a família num humilde “vale” minerador. Pois aquela frase, que eu mencionei no início deste vídeo, me pareceu perfeitamente condizente para descrever também toda a dinâmica entre os personagens de Os Fabelmans, novo longa dirigido por Steven Spielberg e que funciona, ao seu próprio modo, como uma autobiografia (ou uma coletânea de memórias) do próprio.
E a inserção de uma frase remetente a algo que envolva o nome de John Ford no contexto desta análise aqui, acreditem, não é mera coincidência.
Roteirizado pelo próprio Steven Spielberg ao lado de Tony Kushner (na refilmagem de Amor, Sublime Amor), Os Fabelmans se passa entre início dos anos 1950 e final dos anos 1960, partindo desde a primeira ida do pequeno Sam Fabelman (um avatar do próprio Spielberg, é claro) ao cinema para assistir a O Maior Espetáculo da Terra até o momento em que o garoto, já crescido e buscando espaço no mercado audiovisual, tem um encontro especial que determinará para sempre seu futuro enquanto cineasta. Ao longo de todo este trajeto, que percorre cerca de 15 anos, a gente acompanha também a relação íntima de Sam com a mãe (uma mulher com alma de artista), as divergências que tinha com o pai (um homem mais objetivo e técnico, embora amoroso), a derrocada do casamento entre marido e esposa, os filmes caseiros que o menino rodava com uma câmera Super 8 e que foram se aprimorando com o passar dos anos (à medida que mais e mais pessoas entravam para integrá-los), etc.
Não é preciso muito para notar que, além de uma autobiografia disfarçada, Os Fabelmans se apresenta também como uma “carta de amor ao Cinema” – uma nomenclatura que, a princípio, me traz desconfiança e calafrios por me fazer lembrar de uma série de outros projetos que Hollywood lançou nas últimas décadas que se vendem como relatos “pessoais” sobre a paixão entre seus realizadores e a Arte em si, mas que, na verdade, nada mais eram que Oscar baits enlatados e projetados para simular um caráter íntimo/nostálgico, para parecer uma “carta de amor ao Cinema” (e muitas vezes esta “declaração de amor” se dá através de um romantismo bobo e superficial). A diferença, contudo, é que Steven Spielberg compreende que rodar um plano de uma criança dentro de uma sala de cinema, olhando para a telona com olhos arregalados e/ou sorriso no rosto (e com o projetor lá atrás), pode até ser uma imagem romântica e bonitinha, mas não é o bastante para constituir uma “carta de amor ao Cinema”. Sim, o romantismo faz parte desta relação mágica que a gente constrói com as coisas que a gente ama, mas romantismo por romantismo, também, não diz nada.
Em Os Fabelmans, porém, Spielberg vai além. Ele compõe uma “carta de amor ao cinema”, sim, mas mais importante que isso: ele elabora pacientemente TODOS os motivos para ele se apaixonar tanto por cinema, descrevendo a sua relação com este em todos os seus pequenos detalhes, em cada um de seus estágios e, não menos importante, em cada uma de suas contradições.
A exibição de O Maior Espetáculo da Terra é antecipada por grande expectativa pelos pais do Sam: ele explica cuidadosamente como se dá a experiência cinematográfica, enquanto que a mãe lhe estimula a usar os instintivos para SENTIR o espetáculo. Pois o curioso é que, na reação do menino, o que se tem de primeira não é a catarse, mas, sim, o TEMOR. Não, a relação de Sam com o Cinema não se constrói através de um romantismo bobo e absoluto, mas, sim, de uma dinâmica que demorou a ser entendida: primeiro vem o medo, depois vem a imagem que fica na cabeça dele por semanas, depois vem o desejo de recriar aquele feito espetacular que se viu em cena, depois vem a câmera e o resto é História.
E detalhe: o “feito espetacular”, que envolve um trem sendo colidido, ocorre é refeito pelo garoto num trenzinho de brinquedo. Isso ajuda a estabelecer ainda mais o quanto que, para Spielberg, o Cinema é uma extensão da imaginação que surge e é estimulada, nas crianças através da brincadeira e dos brinquedos. Ele os destrói, mas o espetáculo está ali, bem documentado e registrado.
Ao longo de toda a projeção, sempre que vemos Sam dirigir um longa (por mais barato e mambembe que seja), notamos ali um cuidado patente com cada detalhe daquela mini-produção, para que tudo ali alcance o resultado mais fascinante e adequado possível às idealizações de Sam. Mesmo um filme despretensioso de férias escolares é encarado pelo rapaz como um trabalho sério, como algo artisticamente valoroso.
E é por isso que um dos momentos mais memoráveis de Os Fabelmans, para mim, decorre justamente dessa idealização no videotape de férias escolares. A mudança no comportamento daquele valentão é brusca e inverossímil? Provavelmente, mas isso não importa: afinal, ela reafirma o poder que uma imagem pode provocar, que uma representação cinematográfica pode provocar (inclusive, gerando um resultado tão estupefaciente que a primeira reação é a de desnorteamento, por parte do valentão).
Que essa cena se conclua numa piada metalinguística, na qual Spielberg praticamente olha e pisca pro espectador, reafirma o caráter quase extra-fílmico de Os Fabelmans.
Mas, como falei anteriormente, a maneira com que Spielberg constrói esta reverência diante do Cinema é madura o suficiente para tocar em áreas cinzentas que vão além do mero deslumbramento – e, ao mesmo tempo em que há uma idealização óbvia na forma com que Spielberg enxerga o cinema como algo lúdico, como um universo de possibilidades infinitas, há também um grau de realismo nas ideias de Sam sobre arte que impedem que o filme recaia num romantismo besta.
Da mesma forma, ao mesmo tempo em que Spielberg claramente encara o Cinema como uma válvula de escape, como um refúgio temporário (e espetacular) para os problemas do mundo real, isso não o impede de registrar (ou melhor: documentar) os momentos mais dramáticos de sua vida através das lentes e nas películas – afinal, por mais que o espetáculo possa servir de escapismo, isso não muda o fato de que TUDO na vida de Sam é tratado como… Cinema. Do levantar da cama até o deitar na cama, Sam respira Cinema 24 horas por dia e encara cada mínimo detalhe sob lentes particulares – e, assim, a única forma possível dele finalmente comunicar para a mãe algo que estava entalado há semanas na garganta (e que poderia facilmente ser resolvido se FALADO) é comunicado, no entanto, através de uma “sessão” particular.
“Somos viciados e a Arte é a nossa droga.”
Mas não adianta: o primeiro momento de Os Fabelmans que virá à mente de 9 a cada 10 pessoas que o viram será… a cena final. De novo: há o encantamento diante de uma figura mitológica, mas há também o realismo de entender que aquele momento é humano e até grosseiro (algo que Spielberg reconhece numa gag sonora em que a trilha de Rastros de Ódio é cortada ironicamente assim que John Ford entra em cena).
Não é que seja um desencantamento; apenas uma ampliação da percepção da realidade.
E que maneira de encerrar o filme. No auge de seus 76 anos de idade, Spielberg, um dos gigantes de seu ramo, é consciente o bastante para encerrar seu filme mais pessoal se identificando como… humilde aprendiz de quem veio primeiro.