Mais uma adaptação de Pinóquio? Sério mesmo? Depois de trocentas versões de 1911 para cá (e que vão da clássica animação da Disney de 1940 até o live-action italiano dirigido por Matteo Garrone em 2019, passando por incontáveis esquisitices que rolaram pelo caminho), será que o assunto (nascido da história criada por Carlo Collodi em 1881) já não foi suficientemente esgotado? Ainda mais se considerarmos que só em 2022 foram três novas produções: uma animação russa, uma refilmagem live-action dirigida por Robert Zemeckis para a Disney e uma nova versão comandada pelo mexicano Guillermo del Toro?
Pois parte da resposta para todas estas indagações está em seus próprios enunciados: Guillermo del Toro.
A verdade, contudo, é que qualquer premissa, por mais batida que pareça, sempre pode ganhar cores novas caso submetida a uma abordagem imaginativa. Se cair nas mãos de um realizador criativo o bastante e com plenas condições de botar esta criatividade para jogo, então, se torna ainda mais possível revigorar aquele material, explorando contornos antes desconhecidos e conferindo frescor e novidade a algo que achávamos conhecer de cabo a rabo. No caso do Pinóquio de Guillermo del Toro, estamos falando de uma releitura pensada por um artista que desde o início da carreira, nos anos 90, já demonstrava ser dono de voz e personalidade próprias – algo que só se confirmou nas décadas seguintes, quando o cineasta nos apresentou a uma série de projetos autorais que fizeram mais do que jus à promessa lá detrás (e isso se aplica até mesmo aos seus longas mais “popularescos”, dedicados mais à ação e às explosões, como Blade 2, Círculo de Fogo e os dois Hellboy). E, por mais que eu não seja fã de todos os trabalhos de del Toro (não curto muito A Colina Escarlate nem O Beco do Pesadelo, por exemplo), não vejo muito como negar que até estes tropeços são frutos de decisões conscientes do cineasta.
Mais importante que isso, porém, é que o estilo particular de del Toro parece perfeitamente condizente com uma história que, afinal, é essencialmente uma fábula com toques macabros e que gira em torno de criaturas ora fantásticas, ora peculiares – e se tem uma coisa que obras como O Labirinto do Fauno e A Forma da Água atestaram é que del Toro é um diretor intimamente ligado às fábulas mesmo quando estas se revelam sombrias, criando narrativas que, mesmo quando carregadas de contextos delicados, conotações sexuais e violência gráfica, não deixam de soar lúdicas como um conto de fadas. Não é à toa, portanto, que esta sua reimaginação de Pinóquio seja o filme que é – e o contraste entre esta versão e aquelas produzidas pela Disney pode ser notada através simplesmente das diferenças nos designs do personagem-título: se naquelas adaptações Pinóquio (com seus olhões, seu sorriso e sua roupinha colorida) provocava apenas adoração, aqui seu rosto esculpido em uma madeira rústica e mal-acabada soa simultaneamente fofo e esquisito, creepy.
Dirigido por Guillermo del Toro e por Mark Gustafson (que atuou como diretor de animação nO Fantástico Sr. Fox de Wes Anderson, também em stop-motion), o filme recontextualiza a história de Pinóquio para a Itália fascista de Mussolini e já começa com um prólogo que rivaliza com o de Up: Altas Aventuras ao relembrar o passado do carpinteiro Geppetto ao lado do filho, culminando num bombardeio que acaba matando o garoto e, assim, gerando no pai um trauma que depois o motiva, num momento de embriaguez, a cortar uma árvore e dela esculpir um menino de madeira. A partir daí, vocês sabem o que vêm: um espírito da floresta, tocado com a dor de Geppetto, resolve dar vida ao boneco e batizá-lo de Pinóquio, enquanto um Grilo falante, que vivia dentro da árvore cortada pelo carpinteiro, recebe a missão de agir como “tutor” (ou “conselheiro”) do menino. Nem preciso dizer que, quando Pinóquio conta uma mentira, seu nariz cresce – a diferença é que, se nas versões anteriores o nariz se tornava uma vara fina e reta, aqui ele irrompe em galhos cada vez maiores e mais disformes.
E isso, mais uma vez, reflete toda a abordagem de Guillermo del Toro, que mergulha no estranhamento (às vezes, até no perturbador) para extrair uma conclusão edificante – e, neste sentido, a velha habilidade do diretor em conciliar a leveza e o horror, o fabulesco e o incômodo, se faz presente de modo inequívoco em Pinóquio, sendo fascinante como ele consegue saltar de uma cena envolvendo o treinamento (e a lavagem cerebral) de crianças num campo fascista (com direito a vilões saídos diretamente daquele período, incluindo aí o próprio Mussolini) a um clímax que acompanha os personagens tendo que sair do interior de uma baleia (que mais parece um monstrengo marítimo do que, de fato, uma baleia) e o personagem-título nadando de forma caricata, como se fosse… bom… um personagem de desenho animado.
Em outras palavras: há um componente obviamente cartunesco no que tange os elementos históricos reais, mas também uma indispensável aura soturna ou mesmo melancólica circundando tudo que é mágico/fantástico – um equilíbrio dificílimo, mas que, afinal, é a especialidade de del Toro e que, em Pinóquio, é enriquecido pelo excepcional design de produção de Guy Davis e Curt Enderle, que ajuda a cimentar a percepção de que aquele mundo é, como o próprio Pinóquio, composto por pedaços de madeira sujos, farpados e mal cortados que se acumulam uns sobre os outros (ou, então, é visualmente instigante, mas também triste e assustador tanto em aparência quanto em conceito, como é o mundo dos espíritos para onde o protagonista é repetidamente enviado – e por circunstâncias sombrias, mas que o filme retrata ora com leveza, ora com certa naturalidade). Nem preciso dizer, aliás, que a própria decisão de conceber a animação em stop-motion se revela plenamente adequada de um ponto de vista conceitual/temático, reforçando a imagem daqueles sujeitos como pedaços de madeira imperfeitos.
Assim, a ideia de ambientar (e realocar) toda a história de Pinóquio para o contexto (real) da Itália fascista de Mussolini revela-se uma decisão perfeita e apropriada em uma trama que, afinal, tem como finalidade a aceitação das excentricidades e das “imperfeições” de cada um. Não, a inserção do fascismo não se dá por acaso nem acontece paralelamente à trama principal (como se enfiada à força a fim de constituir uma “crítica” aleatória); ela acontece com o propósito claro de realçar, através do contraponto com um contexto social no qual uma população inteira era reprimida e obrigada a encaixar-se num modelo de “ordem” e “obediência”, a importância de uma figura como Pinóquio aceitar-se como é e recusar-se a abrir mão de sua natureza/identidade.
E é por isso que admiro tanto o desfecho desta versão de Guillermo del Toro, que – sem spoilers – ressignifica, sob lentes e significados novos, o desejo do Pinóquio em virar um “menino de verdade”.
Para Guillermo del Toro, ser um “menino de verdade” não é se converter numa criancinha fofa e bem-vestida (como aquela da Disney), mas, sim, bater o pé no chão e assumir-se do jeito que é. Mesmo que isso implique em ser uma peça de madeira excêntrica, imperfeita e – por que não? – bizarra.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme:

