O plano está apontado para os ladrilhos da garagem de uma família de classe média que reside no bairro de Roma, no México. Depois de permanecer estável durante alguns minutos, mostrando uma porção de água jorrar repetidamente naquele chão, a câmera se mexe e mostra quem está segurando o balde e molhando aquele solo: Cleo, a empregada dos moradores daquela casa. Enquanto se movimenta naquele espaço, a personagem se vê cercada por três gaiolas – e, dentro destas, encontram-se pássaros que piam e batem suas asas, mas sem conseguirem levantar voo (afinal, estão espremidos em um lugar pequenino). A imagem não poderia simbolizar melhor a condição da própria Cleo, que, do início ao fim, segue aprisionada em uma rotina excruciante e limitada pela distância entre as classes sociais, estabelecendo de vez uma ideia de confinamento que não deve acabar tão cedo.
Produzido, roteirizado, dirigido, fotografado e co-montado por Alfonso Cuarón com base nas memórias de sua própria infância, Roma é dedicado à empregada doméstica que fez parte da juventude do cineasta (seu nome, Libo, antecede os créditos finais). Assim, o filme se consolida como um legítimo estudo de personagem e adota a empregada Cleo como centro das atenções, observando seu cotidiano enquanto ela lava o chão, limpa a casa, cuida das crianças e obedece às ordens dadas por Sofía, sua patroa. No processo, Cuarón aborda também o rápido namoro que Cleo manteve com Fermín, um jovem que faz parte do grupo paramilitar “Los Halcones” (ou “Os Falcões”), e se projeta na figura de Pepe, um dos filhos de Sofía.
Assim, Roma se estabelece como um projeto notavelmente pessoal, já que Cuarón reencena sua infância (mudando apenas os nomes dos personagens), retrata cada detalhe de suas lembranças com cuidado e dedica um bom tempo a passagens que, mesmo sem acrescentarem muito à narrativa, revelam-se precisas ao ilustrarem o caráter íntimo da obra – não é à toa que o próprio Cuarón tenha assumido tantas funções diferentes nesta produção, permitindo que a fotografia e a montagem correspondam às suas memórias da maneira que ele julga ser a mais correta. E isto é notável em Roma, que, do início ao fim, soa como um registro de algo que há muito ocorreu na vida de seu realizador e que ele guarda com afeto em seu álbum de memórias (e o fato de ter sido concebido em preto e branco ajuda o filme a soar ainda mais como um documento do passado; embora não se equipare, por exemplo, à “textura” nostálgica e amarelada que Selton Mello e Walter Carvalho exibiram em O Filme da Minha Vida).
A intimidade de Cuarón ao revisitar suas memórias se reflete na forma como alguns dos personagens são desenvolvidos: Cleo é uma mulher que se vê presa a uma realidade aparentemente impossível de ser quebrada, mantendo-se passiva, calada e indiferente enquanto a câmera se limita a observá-la de longe – e a atuação da estreante Yalitza Aparicio (que, vejam só, era professora antes de seu talento como atriz ser descoberto) é esplêndida neste sentido, explorando cada nuance presente na persona de Cleo com sutileza e minimalismo. Já Sofía é uma mulher que está farta de ser subjugada pelo marido, mas que só consegue se desprender de suas amarras aos poucos (e isto compromete sua estabilidade emocional, o que fica patente em uma cena onde, ao perceber que Pepe está entreouvindo uma conversa, castiga o menino com um tapa na cara e se arrepende logo em seguida), ao passo que a maneira como Cuarón introduz o pai da família é, por si só, bastante reveladora: antes de mostrá-lo da cabeça aos pés (ou mesmo seu rosto), o diretor prefere se concentrar nos pequenos detalhes que compõem a personalidade metódica, fria e materialista do sujeito (como o cigarro que ele está fumando, o rádio que está ouvindo e o desespero para manter seu carro em perfeitas condições).
Não que seja necessário comprovar, a esta altura do campeonato, o talento de um cineasta cuja carreira é composta por E Sua Mãe Também, por Gravidade e pelo meu capítulo favorito da série Harry Potter (O Prisioneiro de Azkaban). Aqui, Cuarón demonstra uma cautela admirável na composição de cada plano, fazendo jus à beleza que certamente está contida em suas lembranças particulares – e os movimentos que o diretor executa com a câmera são construídos de maneira ambiciosa, culminando em um travelling circular que ocorre dentro de um carro me lembrou de outro parecido que o mesmo Cuarón rodou em seu melhor filme, Filhos da Esperança. Por outro lado, chega um momento em que estes travellings começam a se transformar em meras distrações, como se existissem apenas para que o cineasta ostentasse sua capacidade de compôr imagens elegantes – o que não significa, no entanto, que estas não impressionem em seus esforços técnicos: há um instante, por exemplo, em que Cleo está em um andar e desce para o térreo, numa ação que é registrada através de duas panorâmicas que se interligam. Além disso, o design de som desempenha um papel fundamental ao conferir peso, realismo e fisicalidade a cada atividade feita por Cleo, enfatizando ruídos que ajudam a criar uma atmosfera mais visceral e detalhista.
Hábil também ao pontuar a narrativa com lembranças de eventos que entraram para a História do México (como o Massacre de Corpus Christi – ou “El Halconazo” –, no qual o grupo paramilitar dos “Halcones” foi enviado para abater estudantes que protestavam contra reformas adotadas pelo governo mexicano, matando mais de 120 jovens), Roma aproveita o retrato íntimo da vida de Cleo (feito a partir da memória de Cuarón) para levantar questões pertinentes para um contexto ainda maior: Fermín, por exemplo, claramente enxerga a protagonista como um objeto, passa a maltratá-la ao descobrir que ela engravidou e nega que o filho seja seu – e este tipo de situação consiste em um abuso que ainda hoje destrói a vida de muitas mulheres. Da mesma forma, o simples fato de Cleo ter sido escolhida para protagonizar a história é um ato político por si só, pois induz Cuarón a inevitavelmente mostrar o cotidiano de Cleo como empregada doméstica e, portanto, escancarar a mentalidade exploradora da elite em relação à classe baixa (não é absurdo supôr que existem ecos de Que Horas Ela Volta? aqui). Ao observar a rotina da personagem, o cineasta deixa claro que a condição subordinada da empregada não parece ter uma solução viável, expondo um problema endêmico de uma sociedade desigual sem amenizar a situação.
Até chegar a cena da praia. Quando Cleo resgata três crianças de Sofía, expõe um sentimento ruim que vem lhe abalando ultimamente e recebe um abraço coletivo (aquele que está no pôster), fica a sensação de que o afeto projetado por aquela família tende a suavizar o fato de que a empregada é… uma subjugada cuja condição social é aproveitada pelas classes média e alta. Aliás, a premissa de Roma revela-se problemática desde sua concepção, já que se trata de uma obra na qual Alfonso Cuarón, um sujeito naturalmente privilegiado, relembra com nostalgia o carinho (recíproco) que sentia pela empregada, enfeitando a tragédia vivida por Cleo (seu confinamento socioeconômico) com imagens plasticamente bonitas – e sucumbindo, como consequência, à mentalidade da elite que insiste em dizer que suas babás/governantas “fazem parte da família”, mas se esquecem de que estas têm que usar banheiros separados, trabalhar/acordar em horários específicos e ter seus salários descontados dependendo de qualquer leve tropeço que possam cometer. Não, Cuarón não é necessariamente mal intencionado, apenas… favorecido demais.
Mas este não é o único problema de Roma, que, do meio para o fim, começa a se tornar redundante em seu discurso e na maneira como desenvolve seus personagens: sim, existem momentos que se destacam (como o Massacre de Corpus Christi, o parto de Cleo e até mesmo a sequência da praia, que impressiona graças à intensidade de sua construção sonora), mas, de modo geral, a segunda metade da projeção se limita a repetir o que a primeira já havia estabelecido (em outras palavras: o debate a respeito da protagonista, que se vê presa a uma realidade cruel sem perspectiva de solução, não amadurece tanto). Para piorar, Cuarón cria uma cena específica que, além de descartável, vai na contramão de tudo que o filme vinha consolidando até então: aquela onde Cleo consegue se manter em uma determinada posição, o que sugere que ela está “em paz” – e isto enfraquece o retrato da protagonista como uma mulher atormentada, reprimida e sem esperanças.
Quando assisti a Roma pela primeira vez, me vi encantado com o que Alfonso Cuarón havia me apresentado e não hesitei em colocá-lo na minha lista dos melhores filmes de 2018. Ao revisitar a obra, porém, constatei algumas fragilidades difíceis de relevar. É um belo filme, de fato, mas isto não o torna invulnerável.