Joe Gardner tem uma morte estúpida: depois de passar a vida inteira sonhando com o dia em que sua carreira de pianista finalmente decolará (contentando-se apenas em dar aulas de Música para uma turma de adolescentes desinteressados), o protagonista de Soul, nova produção da Pixar, enfim recebe uma oportunidade de ouro ao ser convidado por um ex-aluno, Curley, para se apresentar na banda da renomada saxofonista Dorothea Williams. Ao celebrar a notícia, porém, Joe fica tão distraído enquanto anda pelas ruas de Nova York que acaba… caindo em um bueiro e indo parar no universo das almas, no qual se vê sob a forma de um fantasminha prestes a entrar no mundo “pós-vida” – e a rapidez com que isto ocorre, levando Joe da felicidade de ver seu sonho finalmente se realizando até a descoberta de que morreu antes de realizá-lo, é o que torna a situação tão trágica; afinal, nos lembra de como a vida é um bem precioso que pode acabar justo no instante em que parecia prestes a fazer algum sentido.
Que Soul ainda assim se revele uma obra divertida e bem humorada na maior parte do tempo é uma verdadeira proeza, interessando-se não (apenas) em levar o público às lágrimas, mas em despertar nele uma reflexão sobre a vida, a morte, a efemeridade da primeira e a iminência da segunda.
Dirigido por Pete Docter (Monstros S.A., Up, Divertida Mente) e pelo estreante Kemp Powers, Soul gira em torno do professor de jazz Joe Gardner, que, como já dito, enfim parece ter conquistado a oportunidade de sua vida – a de tocar em uma banda reconhecida e se tornar um pianista de renome – quando, distraído pela empolgação após receber a notícia, acaba despencando em um bueiro e morrendo na hora, se descobrindo, logo em seguida, sob a forma de uma alminha azul prestes a entrar no universo “pós-vida”. No entanto, ao entrar em desespero, Joe descobre que, ali por perto, estão também as almas do “pré-vida” – ou seja: aquelas que são treinadas para atravessar um portal e ir parar sob as peles dos humanos que ainda estão para nascer –, enxergando nisto uma oportunidade de mergulhar em direção a seu antigo corpo moribundo que agora encontra-se inconsciente na cama de um hospital. A partir daí, Joe vira amigo de outra alminha, conhecida apenas como 22, e dá um jeito de atravessar o portal do “pré-vida” – o problema é que, na queda em direção ao leito hospitalar, a alma do sujeito cai no corpo de um gato e 22, na de Joe, obrigando um a entender como é sentir-se sob a pele do outro.
Como dá para perceber só pelo breve resumo acima, Soul é uma obra que propõe discussões existenciais, no mínimo, ambiciosas, desde o propósito da vida até o fato de esta só ganhar um sentido verdadeiro graças à morte, chegando ao ponto de materializar conceitos que até então se encontravam apenas no campo do metafísico. Neste sentido, aliás, a Pixar parece estar ficando cada vez mais ambiciosa com o passar do tempo: sim, o medo do abandono e a busca por um propósito são temas que já se faziam presentes desde o primeiro Toy Story, porém sempre com o objetivo de pontuar as jornadas de seus protagonistas, funcionando mais como subtextos do que como premissas centrais. De uns anos para cá, contudo, a situação parece ter mudado a ponto dos artistas por trás do estúdio – em especial, Docter – não hesitarem em criar filmes inteiros que se dediquem a solidificar conceitos abstratos como, por exemplo, a depressão, as emoções que habitam a mente humana, o universo pós-morte e, agora, a relação das almas (se é que estas existem) com nossos corpos em carne-e-osso. (E é por isso, diga-se de passagem, que confesso não ter a menor ideia de como uma criança reagiria a uma produção como esta.)
Mas isto não quer dizer, porém, que Soul seja uma obra triste ou incapaz de divertir, já que Pete Docter (uma das maiores mentes criativas da Pixar) e Kemp Powers (um nome a ser acompanhado daqui em diante) se mostram perfeitamente capazes de criar gags que, explorando as possibilidades visuais oferecidas pelo universo do filme, funcionam ao imaginar, por exemplo, personalidades históricas em suas versões de alminhas (Ghandi, Muhammad Ali, Leonardo da Vinci, etc), sendo bacana perceber como estas piadas servem não apenas para levar o espectador ao riso, mas também para dizer algo a mais sobre os personagens (só vendo Madre Teresa de Calcutá perdendo a paciência com 22 para entender como esta, por sua vez, é uma pessoa difícil de lidar). Em compensação, os momentos de delicadeza que contrabalanceiam a narrativa se revelam tocantes justamente por não tentarem arrancar as lágrimas do público a fórceps – e, se Soul ainda assim provoca o choro (e provocou em mim), este vem como consequência não necessariamente de uma cena emotiva (como os desfechos de Toy Story 3, Divertida Mente ou Viva: A Vida é uma Festa), mas das reflexões que propõe (e que abordarei melhor depois) a respeito de como a vida pode ser desperdiçada quando dedicamos nossas almas a um propósito nunca realizado.
Por falar em almas, aliás, Soul se revela mais um trabalho da Pixar que impressiona em sua fascinante construção de mundo – que, mais uma vez, se encarrega de materializar conceitos essencialmente metafísicos (os universos de onde viemos antes da vida e para onde vamos depois da morte), sendo coerente que um se apresente como o exato oposto do outro: se o “pós-vida” se resume a um largo espaço vazio, escuro e impessoal, o “pré-vida” surge como um ambiente que, embora austero e resumido a poucas cores (basicamente, branco e azul), é certamente mais convidativo e confortável que o anterior, soando convincente como um cenário que, afinal, tem como finalidade estimular novas almas a viverem suas vidas – e o caráter abstrato tanto do “pós” quanto do “pré-vida” se reflete, em especial, nos traços dos personagens que administram ambos os espaços (chamados de “Zés”), permitindo aos animadores imaginá-los como criações bidimensionais, como meras linhas desenhadas, não-concretas.
O contraste entre o universo das almas e o dos corpos em carne-e-osso, portanto, não poderia ser maior: o primeiro é basicamente uma concretização física/visual de ideias que partem de teorias abstratas; o segundo é… a Nova York real, com suas calçadas quebradas, suas barbearias de bairro, seu metrô que passa por cima da rua, seus edifícios em obra (que casualmente deixam um pedaço da construção cair em cima de alguém), seus clubes de jazz, etc. Neste sentido, até mesmo o preciosismo habitual da Pixar acaba desempenhando um papel importante ao investir em um realismo que, além de tecnicamente impressionante nos mínimos detalhes (dobrinhas e sujeiras nas roupas dos personagens; fluidez na movimentação de seus corpos; texturas das peles, dos objetos de cena, das paredes, dos asfaltos; etc), ajuda também a reforçar ainda mais o contraste entre o mundo dos humanos (ou seja: o mundo real) e aqueles “pré” e “pós-vida” (lúdicos e cartunescos por definição). Para completar, só o fato de Soul fazer dois universos com estéticas tão particulares funcionarem em conjunto é um mérito à parte; o que também se aplica à trilha de Matt Aspbury e Ian Megibben, que consegue a proeza de fazer gêneros tão distintos como jazz (ouvido no mundo dos humanos) e dubstep (no mundo das almas) conviverem dentro do mesmo filme.
Ainda assim, entre todos os conceitos criados por Soul, o que mais me chamou a atenção foi, sem dúvida alguma, o das “almas perdidas”: apresentadas como criaturas corpulentas, cinzentas e inexpressivas que habitam uma espécie de limbo entre o “pré” e o “pós-vida”, estas são basicamente as almas que se deixaram definir por uma atividade qualquer (um emprego; um hobby; um sonho em longo prazo; etc) e que, por isso, se viram fadadas a passar o resto da eternidade pensando somente nela (uma destas almas, por exemplo, se limita a grunhir “Negócios!” ad eternum). E é aqui, claro, que começam as discussões existenciais propostas pelo filme – e que, por sua vez, foram o que realmente me conquistaram nele: ora, quando nos dedicamos a um projeto que deveria (e deve) ser uma fonte de prazer, mas permitimos que este nos domine a ponto de virar motivo apenas de estresse, desânimo e ansiedade, é porque algo está sendo feito errado (e isto é dito por qualquer indivíduo que trabalha com o que gosta).
E parar para localizar o erro é um exercício fundamental que eu mesmo tive que fazer algumas vezes ao longo dos últimos anos sempre que me via ansioso, estressado e sofrendo de burnout porque não conseguia, por exemplo, terminar a edição de um vídeo ou publicar um texto no tempo que pretendia.
É nestas horas que precisamos parar, respirar fundo e perguntar se, afinal, vale a pena passar por isto; se faz sentido começar a se sentir um ser humano pior porque a atividade que escolhemos praticar e que identificamos como o “propósito” (palavra usada pelo filme) de nossas vidas subitamente se converteu em um peso na consciência. No caso de Joe Gardner, o tal “propósito” é o sonho de se tornar um pianista bem-sucedido – e o que torna sua morte tão trágica (ao menos, para mim) é justamente o fato de ter vindo logo quando este sonho parecia prestes a se concretizar, fazendo toda sua vida pregressa se resumir a uma preparação para um momento que, por ironia do destino, não aconteceu.
O que Soul nos lembra, portanto, é que não podemos nos deixar definir por sonhos eternos ou pela busca por um propósito. Sim, a vontade de descobrir de onde viemos, para onde vamos ou – mais importante – por que estamos aqui é algo natural do ser humano e, muitas vezes, o sentido da vida se dá através do objetivo que impomos à nossa individual. Mas também não podemos permitir, por outro lado, que nossa vontade de deixar uma marca e de sonhar em longo prazo nos impeça de viver para nós mesmos – afinal, a única coisa que carregaremos para o túmulo será nosso corpo falecido e, se formos nos preocupar apenas com o “propósito” que buscamos em vida, acabaremos morrendo sem tê-lo encontrado. E a morte, como Soul faz questão de recordar, é um destino que chega para todos e a qualquer momento (tenha você dez ou cem anos de idade), podendo, inclusive, interromper nossas vidas justo no momento em que estas pareciam ganhar o tal “sentido”.
Assim, em vez de vivermos como Joe Gardner em sua primeira vida (desesperado em cumprir sua meta e em ser prestigiado pelos outros), é importante que façamos nossa existência valer a pena para nós e enquanto a vivemos – uma lição que, para Joe, vem como uma segunda chance de aprender a valorizar as pequenas preciosidades que já cercam a todos nós desde sempre: o sabor de uma pizza, o ventinho provocado por um metrô ou o interesse demonstrado por uma aluna.
Ou – e principalmente – as pessoas que já amamos e que já estão aqui para celebrar nossas conquistas, lamentar nossas derrotas e nos levantar quando parecia impossível.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: