Torre das Donzelas se concentra basicamente em um detalhe que 1964: O Brasil Entre Armas e Livros fez questão de ignorar: o fato de várias pessoas terem sido perseguidas e, principalmente, torturadas pelos militares – isto sem contar as outras centenas que morreram e/ou desapareceram. Se o documentário do Brasil Paralelo reduzia os atos brutais que ocorriam nos porões da ditadura a meros “excessos”, o da cineasta Susanna Lira (Damas do Samba, Intolerância.doc, Mussum: Um Filme do Cacildis) vai na contramão do que os revisionistas insistem em dizer e joga um holofote em cima de uma ferida histórica que nunca foi devidamente cicatrizada. E isto não poderia ser mais importante, já que, como falei em minha crítica de Deslembro, um país que não encara os erros do passado é um país fadado a repeti-los.
Produzido ao longo de inacreditáveis três anos (pensem em como o Brasil mudou de 2016 para cá), o documentário de Susanna Lira nos apresenta a um grupo de mulheres que, por terem se posicionado contra o regime militar iniciado em 1964, foram conduzidas a uma penitenciária feminina conhecida como “Torre das Donzelas”, na qual permaneceram por vários meses. Neste período, todas as detentas sofreram abusos físicos e psicológicos por parte dos militares, mesmo que, em muitos casos, não tenham sequer participado da luta armada contra a ditadura (várias delas estavam ligadas somente à organização das pautas dos grupos de oposição). Agora, mais de 50 anos se passaram e boa parte das mulheres que passaram pela “Torre das Donzelas” estão presentes para dar seus depoimentos – entre elas, a ex-presidenta Dilma Rousseff.
Admirável pelo simples fato de relembrar uma tragédia recente da História brasileira (afinal, é importante prestar atenção nos erros do passado a fim de não voltar a cometê-los no presente), Torre das Donzelas retrata suas protagonistas como verdadeiros símbolos de persistência – e isto não poderia ser mais adequado, já que estamos falando de um grupo de mulheres que resistiram a uma sequência de torturas, insultos e pressões psicológicas alastradas por intermináveis meses. Assim, quando Dilma surge em cena descrevendo a tática que usava para chegar ao fim das sessões de tortura, a fala e a imagem da ex-presidenta soam inevitavelmente empoderadoras – o que, claro, encontra ecos no fato de o filme girar em torno de várias mulheres e de como estas se opunham a uma turba de homens. Neste sentido, Torre das Donzelas se destaca também como um exemplo inequívoco de força feminina, abordando um tema que simplesmente não se aplicaria a uma mentalidade masculina.
Mas o maior acerto do documentário (e da direção de Susanna Lira) consiste em explorar o lado humano de suas protagonistas, que, embora retratadas como figuras emblemáticas, soam também como pessoas carregadas de desejos, medos, alegrias, bagagens intelectuais e até mesmo irreverências. Aliás, frequentemente Torre das Donzelas surpreende com algum depoimento que provoca o riso em função do senso de humor das entrevistadas, que de vez em quando quebravam o pavor da situação na qual se encontravam através de tiradinhas pontuais. Não é à toa que os melhores momentos do filme são justamente aqueles que se concentram na amizade entre as protagonistas (como aquele em que algumas delas descrevem um “desfile de moda” que improvisaram dentro da cela enquanto ainda estavam presas).
Fortalecido pelo excelente trabalho da diretora de arte Glauce Queiroz (sua réplica da “Torre”, em especial, se atém a detalhes tão sutis que até as próprias entrevistadas acabam se espantando com o grau de fidelidade em relação à penitenciária original), Torre das Donzelas ainda toma algumas decisões narrativas que ajudam a mergulhar o espectador nas memórias daquelas mulheres – e, neste sentido, é notável a ideia de ilustrar os depoimentos com flashbacks que trazem jovens atrizes encenando as histórias relembradas pelas protagonistas. Trata-se de uma escolha artística que funciona não apenas por ser elegante, mas também por enriquecer o que está sendo relatado.
No fim das contas, Torre das Donzelas acaba funcionando de várias maneiras diferentes, servindo como um recorte histórico indispensável e também como um belíssimo exemplo de perseverança. E quando sobem os créditos finais e as “Donzelas” começam a ser listadas, o público é automaticamente levado a uma sensação de imensa admiração não só pela imagem daquelas mulheres, mas também pelo exemplo que elas dão até hoje.