Não faltavam motivos para que Toy Story 3 se transformasse no primeiro tropeço da Pixar em sua impecável trajetória: acostumada a evitar continuações e a dar espaço a histórias originais (Toy Story 2 foi uma grata exceção), a empresa responsável por Toy Story, Vida de Inseto, Monstros S.A., Procurando Nemo, Os Incríveis, Carros, Ratatouille, Wall-E e Up nunca se mostrou muito interessada num terceiro capítulo da franquia estrelada por Woody, Buzz Lightyear, Jessie e os outros brinquedos do quarto de Andy. Depois de um longo tempo, porém, o diretor Lee Unkrich foi escalado para comandar o projeto ao passo que o roteiro ficou por conta do mesmo Michael Arndt de Pequena Miss Sunshine. Pois ainda bem que o estúdio deixou de lado temporariamente sua política de “não realizar sequências”, já que além de fazer jus aos seus antecessores e merecer ser lembrado como um dos maiores clássicos das animações, Toy Story 3 gera a sensação de que a Pixar existe mesmo para poder proporcionar experiências deste tipo.
Ambientado mais de uma década após os eventos de Toy Story 2, o longa revela o outrora pequeno Andy como um rapaz de 17 anos que está se preparando para ir à faculdade, o que leva os brinquedos ao desespero graças a uma questão muito simples: qual será o destino de seres concebidos para satisfazer um menino que, agora, já é quase um adulto? Graças a reviravoltas do destino, a turma acaba indo parar na creche Sunnyside e, à primeira vista, parece encontrar a paz – ao contrário de Woody, que imediatamente se esforça para retornar à residência do tão querido Andy. No entanto, conforme o tempo passa, Buzz Lightyear, Jessie, Bala-no-Alvo, Sr. e Sra. Cabeça-de-Batata, Slinky, Rex, Porquinho, o trio de alienígenas e Barbie percebem algumas peculiaridades no novo ambiente no qual foram inseridos. Será que realmente foi benéfico que os personagens fossem parar em Sunnyside?
Abrindo-se com uma sequência eletrizante onde acompanhamos uma pequena aventura vivida pelos brinquedos dentro, é claro, da imaginação do pequeno Andy, Toy Story 3 dialoga claramente com os dois antecessores no intuito de estabelecer uma conexão com o que havia sido realizado no passado e encerrar com chave de ouro uma história desenvolvida ao longo de três filmes. Se antes testemunhávamos o crescente temor dos bonecos diante da possibilidade de serem substituídos ou abandonados, aqui vemos os personagens tendo que lidar com esta situação de maneira definitiva; se há mais de uma década Andy era uma criança que passava horas brincando, agora é um jovem cujos interesses pessoais são outros; se anteriormente Woody e seus parceiros viviam felizes com seu dono (leia-se: amigo em comum), o tempo fez com que passassem a testar planos para chamar a atenção do garoto. Em outras palavras: pode-se dizer que, assim como Up, Toy Story é um “filme sobre a vida” grandioso e que torna-se ainda mais impactante graças ao fato de que o próprio público acompanhou por mais de uma década a jornada dos personagens – que, vale lembrar, sempre contaram com arcos dramáticos tão densos quanto os dilemas que encaravam.
Como consequência, o encerramento da narrativa (sem spoilers) e os conflitos pessoais que abalam os brinquedos neste terceiro longa soam ainda mais emocionantes, pois a produção permitiu que o espectador compreendesse com calma e pontualidade tudo o que ocorreu durante 15 anos nas vidas de Woody, Buzz, Andy e por aí vai. Enriquecendo a obra e o desenvolvimento dos personagens, o cineasta Lee Unkrich acerta em cheio investindo em rimas visuais instigantes que envolvem Andy correndo com o boneco do caubói em sua nuca e planos específicos que remetem a composições idealizadas em Toy Story 1 e 2 – e, para mim, a última imagem a surgir em cena antes dos créditos é a mais significativa, já que estabelece uma ligação direta com uma paisagem característica da franquia. Para completar, é difícil não se comover imensamente com o desfecho da película, que põe um ponto final irretocável na saga e revela-se capaz de levar qualquer um a lágrimas e soluços (e que, de certa maneira, ainda serve como um reflexo intrigante a respeito de como se deve lidar com luto e “seguir em frente”, algo que comprova mais uma vez o altíssimo nível de maturidade da Pixar).
Embora os brinquedos sempre tenham reconhecido que alegrar crianças consistia na principal razão deles existirem, ainda é surpreendente vê-los se esforçando para chamar a atenção de Andy, celebrando vitórias pequenas que envolvem essas tentativas, lamentando com imensa dor o fato de que serão deixados de lado e enxergando com entusiasmo a possibilidade de brincarem com turmas de uma creche que serão eternamente “renovadas” (o que não deixa de ser deprimente, já que isto eliminaria qualquer sentimento pessoal que os personagens pudessem ter com seus donos). Aliás, é interessante chegar ao fim deste terceiro filme e perceber que os personagens evoluíram desde o primeiro: Buzz Lightyear conclui um processo de amadurecimento que veio progredindo desde o longa inicial, surgindo cada vez mais humanizado e integrado à “família” dos brinquedos; Jessie sofre ainda mais com a nova situação justamente por já ter passado por uma semelhante há anos; e Rex, Porquinho, Slinky e os Cabeça-de-Batata se mostram menos reticentes quanto à oportunidade de irem a Sunnyside. Por sua vez, até mesmo o vilão da trama apresenta motivações profundas que impedem o espectador de detestá-lo totalmente, ao passo que a dinâmica entre Barbie e Ken rende os melhores alívios cômicos da obra (“Eu não sou um brinquedo de garotas!“). Quanto a Woody… bem, nenhuma descrição que eu elaborasse seria tão apropriada quanto a que o próprio Andy oferece: “Woody é meu amigo desde sempre. Ele é valente como um caubói deve ser, gentil e esperto; mas o que torna Woody especial é que ele nunca desiste de você. Nunca. Ele sempre estará lá por você, não importa o que seja“.
Contudo, o que realmente encanta no projeto é a incrível variabilidade presente no tom da narrativa: seguindo o exemplo de Monstros S.A. e Procurando Nemo (que, não à toa, foi co-dirigido por Lee Unkrich), a produção consegue saltar de piadinhas envolvendo um “Buzz Lightyear espanhol” (hilário, diga-se de passagem) para sequências de tensão fabulosas, encaminhando-se para o já mencionado encerramento emotivo logo em seguida de maneira orgânica – e por falar em sequências de tensão, uma dessas cenas ocorre no terceiro ato e caracteriza-se como um dos momentos onde a Pixar mais deixou sua maturidade em evidência, com os brinquedos sendo obrigados a aceitar… algo (não posso revelar spoilers). E como não aplaudir uma animação que encara com certa comicidade imagens assustadoras (como um personagem sendo capturado e tendo sua cabeça coberta com um saco) e vilões que, juntos, formam uma máfia sem deixar de retratá-los como seres ameaçadores e cujas ações provocam um sentimento de urgência?
Por fim, Toy Story 3 também impressiona em seus aspectos técnicos: representando um avanço óbvio desde Toy Story 2 (afinal, já se passaram 11 anos!), este terceiro episódio apresenta as texturas de Woody, Buzz, Jessie e de todos os outros brinquedos mantendo um grau espetacular de preciosismo e detalhes nas aparências plásticas dos brinquedos (que surgem realistas no modo como refletem luminosidade e são sujadas com terra, tinta e lixo) – da mesma forma, o talento é empregado para conceber a menina Bonnie (cujas bochechas rosadas são graciosas) e o adulto Andy (que, de fato, soa convincente como versão mais velha do garoto visto nos primeiros Toy Story). Igualmente brilhante é o design de produção assinado por Bob Pauley, que se diverte caracterizando Sunnyside como um ambiente multicolorido e fantástico que aos poucos converte-se numa locação mais sombria (mérito que também se deve à fotografia de Jeremy Lasky, que passa a investir em tons cada vez mais soturnos e ângulos de câmera mais baixos à medida que a projeção avança). Complementando, é agradável que o projeto insira easter eggs que vão além apenas da História da Pixar, homenageando Hayao Miyazaki ao incluir uma “participação” de Totoro.
Fortalecido pela trilha incidental de Randy Newman, que corrobora para que os momentos intimistas ou tensos tornem-se ainda mais poderosos, Toy Story 3 é o desfecho perfeito de uma jornada que evoluiu ao longo de mais de uma década – e como já disse em outras ocasiões, é difícil escolher um filme preferido da Pixar, mas este une-se a Wall-E como o mais adulto que o estúdio já concebeu. E, num ano repleto de continuações e reimaginações desastrosas que apresentavam figuras cartunescas e inverossímeis apesar do live-action (A Hora do Pesadelo, Alice no País das Maravilhas, Fúria de Titãs…), é curioso que alguns dos personagens mais realistas e emocionalmente profundos tenham marcado presença numa animação criada através de zeros e uns em computadores.
E mesmo que a trilogia tenha sido encerrada, minha afeição por Woody, Buzz, Jessie e companhia é tão grande que eu nunca recusaria a oportunidade de reencontrar estes brinquedos em produções futuras – se isto valerá a pena ou não, aí já não sei. Mas aguardo ansiosamente os resultados.