Manas imagem superior

Título Original

Manas

Lançamento

Direção

Mariana Brennand

Roteiro

Mariana Brennand, Camila Agustini, Carolina Benevides, Marcelo Grabowsky, Antonia Pellegrino e Felipe Sholl

Elenco

Jamilli Correa, Rômulo Braga, Fátima Macedo, Dira Paes, Emily Pantoja, Samira Eloá, Enzo Maia e Gabriel Rodrigues

Duração

106 minutos

Gênero

Nacionalidade

Brasil

Produção

Marianna Brennand e Carolina Benevides

Distribuidor

Sinopse

Marcielle, de 13 anos, vive em uma comunidade ribeirinha na Ilha do Marajó com o pai, a mãe e três irmãos. Instigada pelas falas da mãe, ela cultua a imagem de Claudinha, sua irmã mais velha, que teria partido para longe após “arrumar um homem bom” nas balsas que passam pela região. Conforme amadurece, Tielle vê suas idealizações ruírem e fica presa entre ambientes abusivos. Ciente de que o futuro não lhe reserva muitas opções, ela decide confrontar a engrenagem violenta que rege sua família e as mulheres da comunidade.

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Manas | Crítica

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Puxando pela memória, a última vez que uma performance mirim me deixou sem palavras, da maneira como a de Jamilli Correa em Manas me deixou, foi quando Brooklyn Prince fez maravilhas no Projeto Flórida de Sean Baker, há sete anos. Sei que pode parecer uma afirmação forte de minha parte, mas faço o que for preciso para provar que não estou delirando. Adolescente da periferia de Belém que marca sua estreia no Cinema, a paraense de 13 anos é uma revelação, uma atriz que já nasce completa e que só não terá uma carreira incrivelmente longeva e prolífica pela frente se realmente não houver mais justiça no mundo.

Marcando a estreia da documentarista Mariana Brennand no terreno das ficções, Manas acompanha Marcielle (ou apenas “Tielle”), uma menina que mora com a família numa comunidade ribeirinha da Ilha do Marajó. Habituada a uma rotina que pouco parece mudar (alternando entre escola, igreja e pesca), a adolescente sempre se recorda de sua irmã mais velha Cláudia, que, no que consta, partiu para longe depois que encontrou um par romântico nas balsas que vêm comprar alimentos ali plantados ou pescados. No entanto, à medida que a trama avança, percebemos que o território ao redor de ambas as personagens é movido por um ciclo de violências sexuais contra menores – abusos estes cometidos, em grande parte, naquelas tais balsas (nas quais vários compradores volta e meia requerem, das pequenas comerciantes, serviços sexuais). E então… é difícil continuar a discutir Manas sem entrar em aspectos centrais da história – e, assim, quando tiver que me aprofundar em algum deles, tratarei de antecipá-los com um alerta de spoilers, ok?

Seja como for, o fato é que a condução de Mariana Brennand me surpreendeu desde o princípio graças ao domínio da diretora sobre o tom da narrativa, costurando uma transição fluida e orgânica entre cada etapa do roteiro escrito pela própria cineasta ao lado de Camila Agustini, Carolina Benevides, Marcelo Grabowsky, Antonia Pellegrino e Felipe Sholl (sim, eu sei que tantos roteiristas envolvidos em um único trabalho costuma ser um mau sinal – mas não aqui). Assim, a primeira metade de Manas se apresenta como… uma representação do cotidiano simples de uma garota repleta de sonhos: aqui, ela participa da apresentação de uma dança no culto religioso; ali, ela pesca e limpa os frutos do mar que venderá a seguir; acolá, ela vê tevê com as amigas e comenta sobre o galã de novela que mais lhe interessa; mais tarde, ela sai com o pai para aprender a caçar e, na hora da janta, é instruída a não deixar comida sobrando (já que o desperdício custaria muito àquela família).

Nestes momentos, o trabalho de Brennand soa quase como um estudo sobre a realidade daqueles indivíduos, como um olhar que busca compreender um dia a dia distante da vivência da própria diretora. Felizmente, a maneira com que a cineasta enfoca aquelas situações é cuidadosa o bastante para não recair em vícios explorativos, conseguindo mergulhar antropologicamente nos pequenos detalhes da vida de “Tielle” sem demonstrar enxergá-la como algo “exótico”, “fora do comum”. Além disso, embora a primeira metade da trama seja pontuada por momentos de leveza e inocência (que virão a se contrastar – e muito! – com o horror da segunda), Brennand e o roteiro são eficazes ao plantarem desde o início algumas “pistas” que já preparam a guinada que virá mais tarde, como uma colega de “Tielle” que engravida (e gera dúvidas nas colegas sobre como ela engravidou) e, claro, um momento em que a protagonista percebe que um conjunto de páginas do seu livro escolar encontram-se grampeadas para que ninguém leia o conteúdo delas.

O conteúdo, com certeza, é a parte da Biologia que trata dos sistemas reprodutores e das formas com que estes são postos para trabalhar. Afinal, o centro temático de Manas está na denúncia sobre como a pedofilia em Marajó vem não de casos pontuais, mas de uma conjuntura sistêmica que permite que mais e mais crianças continuem a ser violentadas de forma silenciosa, sem que os crimes em si repercutam. Assim, Mariana Brennand vai conduzindo o espectador em uma narrativa aparentemente serena até culminar – spoiler! – numa cena em que “Tielle” vende peixes a um balseiro, recebe uma cantada e… corta para os dois num cômodo logo após um programa (leia-se: estupro, já que “Tielle”, volto a lembrar, tem 13 anos). Neste sentido, Brennand demonstra uma responsabilidade notável ao fazer o espectador entender e captar precisamente a gravidade do que ocorreu sem estetizar aquele abuso (filmando-o de forma fetichista e/ou sensacionalista) nem expor Jamilli Correa ao perigo. Às vezes, a sugestão do terror provoca muito mais calafrios do que a exposição do mesmo. E, com isso, o filme elucida os mecanismos por trás de um maquinário que leva tais casos a se tornarem corriqueiros (aliás, é curioso que, na mesma edição do Festival do Rio em que Manas foi exibido, foi apresentada também uma restauração em 4K do clássico Iracema, uma Transa Amazônica, uma obra excepcional de Jorge Bodanzky e Orlando Senna com a qual o longa de Brennand divide alguns pontos em comum).

Mas Manas vai além: ao destrinchar os meios que levam ao crime em si, o roteiro se recorda de que, num país em que cerca de 70% dos casos de abuso infantil começam dentro de casa, privar as crianças de educação sexual é condená-las a não compreender os limites do próprio corpo e, por consequência, não saber identificar quais “toques” de um adulto seriam apropriados ou não. Isso que culmina num momento destruidor em que a delegada interpretada por Dira Paes (perfeita ao alternar entre a gentileza necessária ao atender menores de idade e a veemência requisitada ao lidar com crimes desta natureza) cordialmente pergunta a “Tielle” quais de suas partes íntimas já foram tocadas por um adulto e se isso já teria acontecido antes – no que a menina alega que… sim (e a calma com que Brennand constrói a cena, alternando passivamente entre os rostos de Paes e Correa e permitindo que elas troquem as perguntas/respostas num ritmo pausado, ajuda a tornar ainda mais excruciante a tensão e a dor de cada revelação). E se Rômulo Braga é cirúrgico ao descortinar aos poucos cada “camada” do pai, apresentando-o como um sujeito que parece simpático (ou melhor: identificável) a princípio para depois – de novo: spoiler! – se revelar cada vez mais como um ignorante agressivo e truculento (capaz de criar as filhas na base do abuso sexual), Fátima Macedo encarna com precisão o choque e a negação da mãe ao se recusar a acreditar na palavra de “Tielle”, preferindo ressaltar que o marido é “um homem bom” em vez de escutar a filha por um segundo.

O que nos traz, então, à performance magistral de Jamilli Correa. Demonstrando um profundo controle sobre cada nuance emocional e psicológica de “Tielle”, a pequena atriz atravessa a projeção com um semblante tão minucioso que é capaz de alternar, através de uma mudança de um centímetro no canto da boca ou no olhar, entre o caráter sonhador natural de uma criança e o distanciamento causado por uma rotina de tédio e/ou condicionamento – um condicionamento que se faz presente, também, no momento da perda da infância, quando a protagonista sofre pelo abuso derradeiro que a leva a entender, afinal, sua condição de vítima. Tudo isso é transmitido por Correa, mais uma vez, através de um movimento discreto no rosto aqui ou uma leve alteração no tom de voz ali – e, ao surgir chorando após ser castigada, a cena soa tremendamente pesada não pela atriz “saber chorar bem”, mas por conseguir incutir, naquelas lágrimas e naquela garganta engasgada, o peso aterrador de quem foi recriminada pelo próprio pai depois de sofrer um estupro.

E, mesmo assim, Correa ainda faz mais uma transição perfeita nos minutos finais da projeção, quando é hábil ao “vender” ao espectador a ideia de que “Tielle” se converteu, naquele desfecho, em uma figura corajosa a ponto de encerrar o próprio arco de maneira praticamente heroica, se engrandecendo em vez de se definir somente como vítima. Assim, Manas é uma obra que eu não ficarei espantado se vier a reverberar nos próximos anos e que, espero, fará o público sair da sessão com a certeza de algo que deveria ser óbvio há muito tempo: que ser contra educação sexual nas escolas é coisa de quem pouco ou nada se importa com a segurança das crianças que diz proteger.

Visto no Festival do Rio 2024.

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