A história por trás de A Semente do Fruto Sagrado é inacreditável por si só. Durante 70 dias, o cineasta Mohammad Rasoulof e sua equipe rodaram o longa em sigilo no Irã, já que o teor pesadamente crítico da produção e o histórico passado do diretor (que já foi preso, condenado e proibido de deixar o país simplesmente por criticar a repressão das autoridades locais) obviamente trariam problemas com o governo. Eis que o filme foi selecionado para a mostra competitiva do Festival de Cannes, o que levou o regime do Irã a interrogar os envolvidos no projeto e a condenar o cineasta a oito anos de prisão, açoitamento e confisco de bens; além de pressionar pela retirada do longa da seleção de Cannes. O que Rasoulof fez, então? Fugiu para a Alemanha (onde finalizou a produção junto a duas empresas de lá; é por isso que o filme, embora iraniano, disputa uma vaga no Oscar como candidato alemão), exibiu A Semente do Fruto Sagrado no Festival e foi laureado com o Prêmio Especial do Júri.
Porém, o que importa em uma análise crítica não é a história dos bastidores de uma obra, mas, sim, a obra em si – e o fato de ter sido lançado às custas de tanto suor por fazer uma denúncia contundente não é o que torna um longa necessariamente bom, já que as intenções nobres de um projeto (ou sua posição moralmente correta diante de algo) pouco valeriam se o resultado fosse artisticamente falho. Não, A Semente do Fruto Sagrado não é um dos melhores filmes de 2024 apenas por defender a coisa certa (ou por ter sido concebido sob extrema dificuldade); é porque é um trabalho espetacular mesmo.
Com roteiro também escrito por Rasoulof, o longa gira em torno da família de Iman, um advogado recentemente promovido a juiz investigador do truculento Tribunal Revolucionário de Teerã. Convocado a assinar centenas de sentenças de morte por dia, ele desfruta de um aumento salarial que proporciona, à esposa Najmeh e às jovens filhas Rezvan e Sana, um padrão de vida bastante razoável. No entanto, depois que a execução de uma mulher faz aumentar uma onda – já crescente – de manifestações populares contra o regime do Irã, a harmonia na casa de Iman começa a se rachar, já que Rezvan e Sana se mostram claramente favoráveis aos protestos (e contrárias à violência do Estado) enquanto Najmeh, tão mergulhada em fundamentalismo religioso quanto o marido, repreende imediatamente as filhas. Como se não bastasse, a tensão na casa aumenta ainda mais depois que a pistola concedida a Iman pelas autoridades desaparece misteriosamente, o que desperta no sujeito uma paranoia que o joga contra a esposa e as filhas – e de formas cada vez mais alarmantes, violentas e perigosas.
Usando o crescimento da tensão dentro daquela família como um espelho claro da escalada das manifestações contra o autoritarismo do regime do Irã, A Semente do Fruto Sagrado é uma obra particularmente eficaz ao adotar o “micro” como meio para discutir o “macro”. Iman, em especial, é um representante do Estado repressor que segue tolhendo vidas e direitos daqueles que se atrevam a fugir aos dogmas que impõem, se apresentando como “virtuoso” (por fornecer boas condições de vida à família) para aos poucos se tornar cada vez mais bruto à medida que é questionado dentro de casa, ao passo que Rezvan e Sana reivindicam o direito de poderem agir como humanos ativos e autônomos, sem terem de submeter-se a um código que as transforma em completas subalternas que têm de cobrir o rosto ao saírem de casa e se calar quando o homem (ou a “autoridade”) manda. Mas Rasoulof entende que o contraste, por si só, não seria o bastante para imprimir um quadro amplo e complexo – e, neste sentido, a figura de Najmeh se torna essencial por mostrar que há, sim, um número expressivo de mulheres naquela sociedade que não só não contesta o governo como consente com este, já que o dogmatismo é tão intenso que há muito as convenceu de que devem se resignar àquela posição porque é o caminho natural das coisas; porque sim.
Aliás, se A Semente do Fruto Sagrado prende o espectador (e me prendeu a ponto de fazer os 168 minutos de duração voarem aos meus olhos), muito se deve à tensão exponencial que Rasoulof estabelece naquela família, quebrando a harmonia através de um comentário aqui, uma desobediência ali e uma discordância mais acalorada acolá – e toda a sequência da discussão durante um jantar, que toma uns bons minutos de tela, é hábil ao retratar como questionamentos lógicos, mas que desafiam as “ordens” impostas, são capazes de desestruturar por completo quem as ditou (e este, vale lembrar, é prontamente defendido pela esposa, que acusa as filhas de “estragarem o clima do jantar”, ao passo que o marido taxa as contestações de “lavagem cerebral feminista” ou algo parecido). Ainda assim, confesso que nada me preparou para a segunda metade da narrativa, que traz Iman se convertendo numa encarnação legítima do Estado repressor a ponto de usar, contra a própria família, os mesmos métodos de tortura (física e psicológica) que emprega contra presos políticos, desde cárcere em salas escuras até interrogatórios gravados em videotape.
É aí, contudo, que A Semente do Fruto Sagrado deixa de ser apenas um reflexo (bem-sucedido) da tensão crescente no Irã e passa a ser, também, um estímulo a um levante popular contra o autoritarismo do regime, transformando as mulheres da trama – leves spoilers à frente; se não tiver assistido ao filme, pule para o próximo parágrafo – em figuras que usarão da força para combater a autoridade que as oprime. Acredito, inclusive, que alguns acusarão o desfecho do longa de oferecer uma “catarse” fácil e de soar “frenético” a fim de conquistar a audiência através de estímulos fáceis. De minha parte, porém, considero a “virada” do meio para o fim fundamental para a proposta de Rasoulof, que envolve, em última instância, ilustrar a truculência de Iman (e do governo do Irã) em seu limite, de tal forma que requisite uma resposta à altura das três mulheres para que, então, o “chamado à ação” – para o público – torne-se mais evocativo, mais poderoso. Me parece apropriado, portanto, que o terceiro ato soe como uma espécie de O Iluminado com fundamentalismo religioso no lugar de assombrações sobrenaturais, já que isso ajuda a reforçar o horror das ações daquele pai possuído e a urgência daquelas mulheres de enfrentá-las.
Pontuando a trama com imagens de arquivo que mostram as manifestações populares reais, através de imagens feitas por pessoas que sofreram a brutalidade das autoridades na pele enquanto as gravavam (e que Rezvan e Sana acompanham pela tevê e, principalmente, por vídeos em redes sociais), A Semente do Fruto Sagrado consegue, com esta simples decisão, reforçar o caráter de denúncia incutido em toda a sua idealização, criando uma aproximação que faz com que o horror dos registros documentais traga peso e verossimilhança à atmosfera de angústia sentida pelas personagens, no âmbito ficcional; um fortalece o impacto do outro. Além disso, a inclusão destas imagens reais reafirma a importância das mídias digitais como forma imprescindível de se tentar uma revolução social, já que estas, com sua capacidade própria de democratização da informação, são a melhor maneira de se expor algo ao mundo.
Com isso, A Semente do Fruto Sagrado se apresenta como uma denúncia tão grandiosa que faz jus aos esforços hercúleos de seu realizador para simplesmente fazer o projeto ver a luz do dia. Pois o mundo agradece por ele ter conseguido.
Visto no Festival do Rio 2024.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: