O lugar que mais visitei em toda a minha vida foi, sem dúvida alguma, o apartamento dos meus avós. De certa forma, foi minha “meia-casa”, já que, mesmo morando em outro endereço há 21 anos, aquele foi o palco de, digamos, cinco em cada dez lembranças de infância/adolescência que eu tenha. Cada metro quadrado daquele imóvel continua bem vivo em minha memória, já que o conheço desde antes de me entender por gente. Nele morei por quase um ano (em 2003), dormia todo fim de semana (de 2007 até 2014) e passei a maior parte de todas as férias escolares (do fim de 2006 ao início de 2015). Com a partida dos meus avós, porém, as coisas mudaram bastante de figura: foi como se o apartamento fosse morrendo aos poucos nos últimos 10 anos; a perda de seus residentes – a “alma” do local – foi se alastrando gradualmente em cada centímetro das paredes/mobílias/eletrodomésticos/etc. Em janeiro deste ano, o imóvel finalmente foi vendido e, antes que as chaves fossem entregues aos novos donos, o visitei uma última vez para… tirar fotos e gravar vídeos de cada canto da casa, só para registrar em algum lugar além da minha memória.
Lembrei disso ao assistir a Valor Sentimental, novo longa do norueguês Joachim Trier (Thelma, A Pior Pessoa do Mundo e Oslo, 31 de Agosto) no qual uma família de artistas mantém uma relação com um espaço particular – a casa que abrigou suas últimas cinco/seis gerações – e, agora que tem de se despedir dele, encontram na arte uma forma de preservá-lo de algum modo e (talvez?) curar/ressignificar velhas feridas que afetavam a interação entre aqueles indivíduos desde sabe-se lá quando. Não me vejo como artista; não acho que minha cabeça funcione como a de tal ou que minha produção (textos/vídeos) me qualifique para tal título. Mas entendo como o ímpeto do registro – ou, no caso da família que estrela o filme, da encenação via arte – pode conter em si um aspecto redentor, que alivie dores, tenha papel central na conservação da memória e faça jus a algo/alguém que se foi.
Escrito por Trier ao lado de Eskil Vogt (que trabalhou com o diretor em todos os trabalhos de ficção – curtas e longas – da carreira deste), Valor Sentimental gira em torno da irmã mais velha Nora, uma atriz que segue ativa no teatro, e da caçula Agnes, que há muito largou as artes cênicas para dedicar-se à psicanálise, mesmo que, na infância, tenha estrelado o filme mais prestigiado de seu pai, o cineasta Gustav Borg. Eis que, quando a mãe da família morre, o pai (então divorciado e residente na Suécia) volta para reencontrar as filhas e, de quebra, rodar um longa com tons autobiográficos (por mais que ele recuse a admiti-los). Para o papel principal, Gustav convida Nora, mas esta declina por ainda guardar mágoas por todos os anos de má relação que dividiu com o sujeito – e, para substituir a filha, o diretor contrata a estadunidense Rachel Kemp, que já vem ganhando certa notoriedade e vê no papel a chance de deslanchar sua carreira de vez.
Antes de introduzir qualquer um dos membros dos Borg, porém, Valor Sentimental tem início se concentrando na tal casa que citei anteriormente e que abrigou aquela família por gerações. Tanto pela narração em off (que, em tom melancólico e quase deprimido, relembra a história daquela morada, dos antepassados que por ela passaram e do significado emocional de cada mínimo detalhe do imóvel) quanto pela maneira com que a câmera de Joachim Trier e do diretor de fotografia Kasper Tuxen percorre a casa (dando atenção à textura de cada parede, janela, espelho, degrau de escada e centímetro de assoalho, com movimentos suaves e pacientes que em alguns pontos me remeteram à cena final de Ainda Estou Aqui), o filme já começa estabelecendo aquela casa não como um ambiente puro e simples, mas como uma entidade viva que reflete e define as personagens que viremos a seguir nas duas horas seguintes, manifestando alegria (nos melhores momentos) ou desalento (nos piores) à medida ou que a luz do sol entra pela janela, ou que as sombras tomam conta do recinto.
A casa de Valor Sentimental, portanto, é uma incubadora de memórias afetivas tanto quanto as personagens que a ocupam, respirando, empolgando-se ou deprimindo-se junto a elas. Pois o roteiro de Trier e Vogt começa em um ponto de angústia e melancolia óbvias, não sendo coincidência que a primeira personagem que passe a enfocar em seguida seja Nora – e, não à toa, num momento de agonia e ansiedade totais, quando ela está prestes a entrar em cena (numa peça apropriadamente embalada pela música-tema de O Iluminado). Ela é atriz, mas segue com medo do palco – o que talvez soe inusitado, levando em conta que ela vem de uma família de artistas, mas na verdade se torna perfeitamente plausível (e até natural) quando avaliamos a relação dela com o pai. O interessante, no entanto, é que embora Renate Reinsve (que também estrelou A Pior Pessoa do Mundo) atravesse a projeção com um olhar sempre deprimido e sobrecarregado, a atriz retrata os confrontos entre Nora e o pai não em tom de ataque, mas com um jeito tolhido de quem não consegue mais segurar uns ressentimentos há muito entalados na garganta.
Por outro lado, a caçula Agnes, uma personagem cuja presença poderia facilmente se dissipar em meio às tensões entre a irmã Nora e o pai Gustav, se firma como uma figura intrigante em função do fato de ser a única do trio que não se dedica às artes (ela já foi atriz, mas há muito virou psicanalista), o que a leva a adotar posturas distintas dos demais. Vivida por Inga Ibsdotter Lilleaas, Agnes acaba se tornando a integrante da família mais adequada para “mediar” os problemas entre Nora e Gustav sem que isso a distancie de um dos dois a ponto de se importar mais com um(a) do que com outro, percorrendo a narrativa como fiel da balança mesmo que não deixe de sentir na pele os conflitos entre os familiares (o que rende um dos planos mais memoráveis do filme, que a traz chorando abraçada à irmã).
O que nos traz a Gustav, que, encarnado por Stellan Skarsgård em uma das melhores performances de sua carreira, é um cara que vê na arte uma forma de disfarçar e “maquiar” certos aspectos de sua trajetória pessoal (o longa que quer realizar é autobiográfico – por mais que se recuse a admiti-lo como tal – sem fazer questão de ser fidedigno ao extremo a cada detalhe em que tocar) não para fingir ser quem não é, mas para não sucumbir ao peso traumático do real. Distante do papel familiar a ponto de perder qualquer tato social ao lidar com os parentes (ele simplesmente presenteia o neto com DVDs de Irreversível e A Professora de Piano), Gustav é um homem orgulhoso pelo papel de artista que representa, mas jamais consegue esconder, em sua expressão e postura corporal, o fardo que carrega pelo pai imperfeito que sabe ter sido – e, se por um lado ele encara a autoridade que assume no set de filmagem como se fosse a de um pai, por outro não deixa de encarar a atriz Rachel Kemp como avatar da filha real e como uma chance de recomeçar uma relação com outra versão da mesma. (Aliás, Elle Fanning se sai muitíssimo bem ao ilustrar o apego que Rachel recebe pelo papel que interpreta e, ao mesmo tempo, o desconforto por não ser parte daquela família e, assim, ter de interpretar algo que reconhece ser tão íntimo – e verídico – para terceiros).
É esse papel transformador da arte, de permitir que o artista faça as pazes com o passado (ou consigo próprio), se engrandeça ou se redima e compense (ou tente compensar) o que perdeu ou deixou de viver, que torna o desfecho de Valor Sentimental um dos mais lindos, catárticos e emocionalmente sólidos finais de filmes que vi em 2025. Não, Joachim Trier não passa a acreditar, com isso, que todo sofrimento seja válido ou digno de ser vivido – só por poder tornar-se belo a partir da arte – nem vê o processo artístico como refúgio escapista em que todas as consequências do real desaparecerão num passe de mágica.
Apenas acredita que a arte em si, neste meio-campo entre o registro fiel do real e os floreios da imaginação – e até da farsa, por que não? –, é um terreno propício para se resolver e/ou aprender a lidar com fantasmas do passado. Uma coisa não precisa eliminar a outra, afinal.
Visto no MUBI Fest.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme:

