É curioso perceber que, em 2025, várias produções demonstraram um interesse em comum por um tema bastante específico: a arte como forma de ajudar o artista a se curar e/ou se encontrar – seja para cicatrizar velhas feridas, se resolver com alguém, entender melhor o estado de vida/espírito em que se encontra ou achar um meio de suportar velhos traumas. Só nesta última edição do Festival do Rio, por exemplo, já consigo pensar em pelo menos quatro exemplos: Valor Sentimental (em que uma família de artistas que é praticamente colocada num divã através da produção de um filme), o documentário Nada a Fazer (em que Ângela e Leandra Leal – mãe e filha – compensam o fato de nunca terem contracenado ao gravarem uma interpretação caseira de Esperando Godot), o curta Sobre Ruínas* (em que um sobrevivente dos deslizamentos na Região Serrana do Rio de Janeiro, em 2011, revive sua tragédia através das artes plásticas) e este Hamnet: A Vida Antes de Hamlet.
Escrito pela diretora Chloé Zhao e Maggie O’Farrell (esta última, por sua vez, autora do livro homônimo que inspirou este filme), o roteiro retorna ao fim do século 16, quando Agnes e William Shakespeare se conhecem por acaso, se apaixonam perdidamente e, com isso, têm três filhos: os gêmeos Judith e Hamnet e a caçula Susanna. Eis que, por conta de uma das muitas pragas que assolaram o mundo naquele período, uma tragédia acontece naquela família – e, por mais que se trate de uma história real (com um ou outro detalhe que suponho ser mais fantasioso), acho que vale alertar que o restante deste texto trará spoilers, já que é impossível discutir Hamnet sem tocar em seu ponto mais óbvio: o fato de que a morte do pequeno Hamnet cria na família Shakespeare um trauma que inspira o pai a escrever, poucos anos depois, uma tragédia (um tanto conhecida, digamos) cujo personagem-título tem um nome levemente similar ao do filho do dramaturgo, apenas trocando o “n” de seu nome por um “l”.
Surpresas à parte, a verdade é que Hamnet me surpreendeu ao se revelar uma obra dramaticamente ambiciosa, que vai crescendo numa escalada emocional bastante coesa até chegar a um clímax que, de tão poderoso, já é suficiente para elevar o filme inteiro a uma posição de destaque. E digo isso mesmo não sendo grande entusiasta da filmografia pregressa de Chloé Zhao, já que considero Nomadland, por exemplo, um trabalho apenas mediano que por algum motivo abocanhou todos os prêmios da indústria só para, logo em seguida, ser esquecido por praticamente todos que o aplaudiram à época. (Nem levo em conta a bomba Eternos, que se tratava claramente de um projeto de comitê em que a voz de Zhao pouco importou diante dos interesses dos chefões da Marvel.)
Não que Hamnet tenha me conquistado inteiramente desde o início: em alguns momentos da primeira metade, em particular, a construção de certas passagens mais dramáticas me pareceu um tanto… fria, distante, quase como se a diretora tivesse receio em abraçar o melodrama que a premissa exige por medo de soar “artificial” ou “sentimental” demais. Além disso, às vezes a montagem da própria Zhao e de Affonso Gonçalves salta de uma cena/época à outra de forma tão apressada que me gerou um leve – e momentâneo – sentimento de incompletude, como se alguma informação importante/interessante ficasse suprimida entre uma sequência e outra (a avó da família Shakespeare, em especial, passa tão batida pela trama que, quando chega o instante em que ela enfim se torna necessária, minha reação foi a de espanto em lembrar que a personagem existia).
Todas estas más impressões iniciais, porém, caem por terra assim que surge o momento em que o filme vira a chave e diz a que veio: quando o pequeno personagem-título segue o conselho de seu pai (“Seja valente”) e literalmente dá a vida para salvar a irmã da enfermidade que a acometeu. A partir daí, vários dos elementos que me incomodavam em Hamnet se costuram de modo a esclarecer pontos que me deixavam em dúvida, já que a narrativa deixa claro que seu foco não está em elaborar todas minúcias de cada etapa da vida das personagens, mas, sim, em entender como a tragédia da morte de Hamnet impacta os Shakespeare de tal modo que só a arte (no caso, a criação de Hamlet) pode ajudá-los a encontrar uma redenção.
Tudo isso, contudo, sob o ponto de vista não do autor da peça, mas de sua esposa, Judith – o que automaticamente torna importante tudo que acompanhamos na primeira metade do longa (como a protagonista conheceu William, como a família se constituiu, quais os conflitos que ocorreram, etc), já que estas situações, por mais que não fossem o centro narrativo de Hamnet, precisavam ser incluídas (mesmo que rapidamente) para podermos entender melhor como a história, a personalidade e o peso nas costas de Judith se construíram ao longo dos anos. Além disso, se no começo a execução de alguns momentos mais dramáticos soa um tanto fria, aos poucos Zhao afina o tom de suas decisões, envolvendo a história numa atmosfera que, ao equilibrar bem os apelos sentimentais mais explícitos e a secura que toma conta da vida de Judith do meio para o fim, resulta num melancolia bastante particular. Aliás, o controle de Zhao sobre a decupagem também é notável, alternando (junto ao fantástico diretor de fotografia Łukasz Żal) entre planos gerais estáticos e closes com câmera na mão que servem ora para distanciar, ora para aproximar o espectador das personagens em uma única cena.
Mas, claro, Hamnet jamais funcionaria da mesma maneira se não contasse com a brilhante performance de Jessie Buckley em seu centro, sendo admirável como a atriz se despe de qualquer vaidade ao surgir em posições de extremo desconforto, como, por exemplo, ao chorar, babar, cuspir e arrotar ao dar à luz os primogênitos. O mais importante, porém, é a complexidade que Buckley traz a Judith ao estabelecê-la como uma mulher de contrastes: ela grita ao sofrer, mas não deixa de ser autocontida num geral; ela transparece a dor que toma conta de si, mas também conta com um certo estoicismo em seus modos; ela é relativamente introspectiva, mas sua presença é bem mais intensa do que poderíamos supor (algo que o vermelho de seu vestido realça ao destacá-la em meio à floresta). Por último, Paul Mescal retrata bem a erudição de William Shakespeare – o aspecto em sua personalidade que mais a aproxima de Judith – e, não menos importante, a dor que “segura” dentro de si até o instante em que finalmente pode desprendê-la através de um choro libertador.
Uma libertação que só ocorre porque ele encontrou, na arte, uma forma não de substituir o filho que perdeu (o que seria até indigno), mas de manter sua memória viva através de uma obra que, se não cura totalmente, ao menos torna a tarefa de conviver com aquela tragédia um pouco mais suportável – tanto para William quanto para Judith. Os 20 minutos finais de Hamnet, portanto, são a definição perfeita do conceito de “catarse”, se tornando ainda mais avassaladores graças ao magnífico uso da música “On the Nature of Daylight”, de Max Richter, que já ouvimos em A Chegada e no episódio “Long Long Time” (um dos poucos que prestam em The Last of Us).
E, ao amarrar dramaticamente todas as pontas que vimos nas quase duas horas anteriores e transformá-las em uma resolução tão tocante, o desfecho de Hamnet se torna – ao lado dos de O Agente Secreto e Valor Sentimental – um dos mais lindos do ano.
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*Não à toa, Sobre Ruínas foi exibido em sessão conjunta com Nada a Fazer.

