O hábito da Marvel de escolher personagens pouco conhecidos e apostar neles como protagonistas de suas próprias superproduções, correndo sempre o risco de vê-los naufragar no processo, não é novidade: duvido, por exemplo, que o número de espectadores já familiarizados com Homem de Ferro, Capitão América e Thor antes de estes ganharem seus respectivos filmes-solo fosse equiparável ao status que Homem-Aranha, X-Men e mesmo Hulk já preservavam antes de chegarem às telonas. Ainda assim, quando comparamos as apostas anteriores da Marvel com este Guardiões da Galáxia, percebemos que desta vez a jogada é ainda mais arriscada – e inusitada – que de costume: os (anti-)heróis em questão não só são absolutos desconhecidos como nem nos próprios quadrinhos eles receberam grande destaque. Além disso, o diretor/roteirista por trás da empreitada, James Gunn, é um cineasta com um currículo relativamente pequeno (Seres Rastejantes e Super), fazendo o novo filme da Marvel soar ainda mais como uma incógnita.
E é uma grata surpresa, portanto, que Guardiões da Galáxia se revele uma adaptação tão eficiente e com personalidade tão própria, voltando a comprovar que até as histórias mais doidas e improváveis criadas pelas HQs da Marvel são capazes de ganhar vida na telona.
Escrito por Nicole Perlman e pelo próprio Gunn, o roteiro se inicia em 1988, quando o pequeno Peter Quill é abduzido pelos Saqueadores logo após perder sua mãe para o câncer. 26 anos mais tarde, Quill já se estabelecera como Senhor das Estrelas e decide embarcar numa aventura em busca de Orbe, uma pequena esfera que guarda algo extremamente poderoso e que é loucamente desejada pelo Kree Ronan, o impiedoso servente do temível Thanos. Eis que, ao tentar penhorar o artefato, Peter acaba confrontando Gamora – uma guerreira escrava de Ronan e Thanos – e os caçadores de recompensa Rocket e Groot, terminando na prisão do planeta Xandar ao lado dos três oponentes. Na penitenciária espacial, os quatro conhecem o traumatizado Drax, que anseia pelo sangue de Ronan após este ter matado sua família. Assim, aqueles cinco esquisitos se veem obrigados a deixar de lado suas diferenças e se unirem para enfrentar Ronan, impedindo a destruição de Xandar.
Indo numa direção totalmente oposta à de Capitão América 2, James Gunn opta pela descontração e pela leveza em vez de tentar criar uma atmosfera pesada, dramática e que reflita de alguma forma a nossa sociedade atual – algo que muitos filmes de super-heróis pós-O Cavaleiro das Trevas vêm tentando fazer, mas nem sempre com sucesso. Guardiões da Galáxia, por outro lado, abraça sem reservas um lado mais fantasioso, completamente desapegado de qualquer “realismo” – uma escolha perfeita para um filme que, afinal, gira em torno de uma equipe de super-heróis composta por um guaxinim falante e uma árvore viva.
Porém, o fato de articular uma atmosfera satisfatoriamente leve e irreverente não impede James Gunn de dosar o bom humor (dominante na maior parte da narrativa) com conflitos dramáticos que jamais buscam chamar a atenção para si mesmos e que, por isso, acabam servindo justamente para fortalecer a eficácia dos momentos mais alegres: se a tocante morte da mãe de Peter surte um efeito emocional óbvio no menino, imediatamente saltamos para outra sequência na qual vemos o mesmo personagem, já adulto, se divertindo pelas galáxias ao som de “Come and Get Your Love”, levando o público da comoção ao divertimento em questão de poucos minutos.
Investindo em uma abordagem visual que faz jus à proposta lúdica, fantasiosa e escapista do roteiro, Guardiões da Galáxia abraça as cores e o absurdo de sua premissa através de direção de arte e figurinos que retratam com precisão a insanidade da narrativa, dos personagens e do universo louco no qual habitam (ou orbitam), indo na contramão da paleta cinzenta e melancólica que dominou Capitão América 2 (e que, de novo, mostrava-se funcional dentro do contexto daquela obra específica). E, se os efeitos visuais usados para criar Rocket impressionam, o trabalho de maquiagem impressiona ainda mais, surgindo para dar vida aos diversos alienígenas que aparecem em cena e que (pasmem!) raramente dependem de computação gráfica para serem concebidos (sim, os efeitos digitais estão presentes – e aos montes –, mas sempre com o intuito de servir à história em vez de soarem como mero exibicionismo técnico).
Igualmente eficiente é a decisão de James Gunn de pontuar a narrativa com uma atmosfera frequentemente setentista e oitentista, que corresponde, afinal, com os gostos de Peter Quill e com o fato de que ele é um ser humano que parou no tempo, que foi arrancado da face da Terra ainda nos anos 1980. Com isso, Guardiões da Galáxia não só referencia obras como Footloose (e seu astro, Kevin Bacon), como também se inspira em toda a estrutura de Uma Nova Esperança, ao passo que as canções que surgem ao longo da projeção (e que são carregadas pelo próprio Peter Quill numa fita nomeada Awesome Mix – Vol. 1) mostram-se fantástica, contribuindo para o caráter nostálgico que Gunn articula do início ao fim.
Mas o grande destaque de Guardiões da Galáxia é a equipe que dá título ao filme – tanto que é difícil escolher um “Guardião” favorito: Chris Pratt (que aparentava ser insuportavelmente antipático nos trailers) entrega um Senhor das Estrelas sarcástico e tremendamente carismático, despertando no espectador uma curiosidade quanto ao seu passado em meio a várias tiradas fabulosas. Já Bradley Cooper confere a Rocket toda a irreverência que o personagem exibia nas HQs, tornando-se impossível não adorá-lo, ao passo que o monossilábico Groot de Vin Diesel rende algumas das melhores piadas do filme graças ao fato de conseguir dizer somente uma frase “Eu sou Groot”. E se a Gamora de Zoe Saldaña ganha dimensão dramática em função de ser ex-escrava de Thanos, tendo que lidar com riscos em função das decisões que tomou por obrigação, o Drax de Dave Bautista soa ainda mais multifacetado: por um lado, é um maníaco que carrega o trauma da morte de sua família; por outro, revela uma dificuldade de interpretar o que os outros dizem que rende momentos memoráveis.
Deixando pequenas pistas que apontam para um futuro promissor para estes personagens (há um mistério envolvendo o pai de Quill que promete ser explorado nas continuações), Guardiões da Galáxia é uma aventura com personalidade própria e que, ao contrário de várias outras do universo dos Vingadores, sobrevive independente destes, não dependendo de referências ou “ganchos” para filmes vindouros do estúdio. Não é uma obra perfeita, claro: há uma ou outra “virada de casaca” de certos personagens (em especial, Nebulosa) que soam artificiais, como se não passassem de meras facilitações de roteiro. Além disso, é preciso dizer que toda a batalha que ocorre durante o terceiro ato funciona mais pelo bom humor e pela interação entre os heróis do que pela ação em si, já que esta pouco mais é do que uma variação genérica das batalhas de naves que já vimos aos montes nos Star Wars da vida.
Mas isto não diminui a eficácia desta que é, sem dúvida, uma das diversões mais honestas que Hollywood entregou em 2014. E mais: é um filme contemporâneo no qual o 3D funciona! Quer feito mais raro que este?
Obs.: há uma cena pós-créditos que traz um personagem ainda mais absurdo e improvável que os Guardiões. De minha parte, digo apenas que, se conseguiram fazer um bom filme protagonizado por um guaxinim e por uma árvore, não duvido que aquilo também possa resultar em algo aproveitável. A verdade é que não duvido de mais nada.