Lion é o tipo de filme que a Academia adora indicar nas premiações do Oscar: centrado num personagem que se encontra numa situação de constante fragilidade, o longa é baseado na história real de Saroo, um menino indiano que adormeceu num trem e foi afastado da sua família por 25 anos, sendo adotado por um casal de australianos que, depois de um tempo, também conquistaram a guarda de outro garoto. Quando reencontramos o protagonista, este já se transformou em um jovem adulto determinado a retornar para os seus parentes biológicos, utilizando o Google Earth para tentar alcançar seu objetivo.
Lendo essa descrição, é fácil concluir que Lion é feito sob encomenda para servir como uma “isca de Oscars” – o que não creio que deixe de ser verdade, já que o filme parece usar todos os recursos que costumam atrair a premiação. No entanto, este não é o único problema do roteiro concebido por Luke Davies com base na biografia escrita por Larry Buttrose e pelo próprio Saroo Brierley: do primeiro momento ao último, o longa nunca consegue despistar o fato de que sua premissa não tem absolutamente nada de criativo ou especial, levando o espectador a ter aquela sensação de “já vi isso antes”. E se a primeira metade da narrativa funciona relativamente bem ao enfocar a situação angustiante vivida pelo pequeno protagonista, a segunda sofre de um risco iminente: não é muito interessante ver alguém mexendo no Google Earth – um problema que o diretor Garth Davis quase consegue contornar graças aos cortes e movimentos de câmera dinâmicos.
Da mesma forma, o cineasta chama a atenção ao criar momentos visualmente instigantes (como o plano geral que mostra Saroo descendo uma escada enquanto é perseguido por uma mulher que, naquele instante, encontra-se sempre no andar de cima), algo que é fortalecido pelo bom trabalho do diretor de fotografia Greig Fraser, que contrasta as paisagens secas e arenosas de Khandwa com os tons azulados e limpos da Austrália (sem contar o emprego de sombras e iluminações pouco expressivas que contribuem para que a sequência ambientada numa estação ferroviária torne-se ainda mais tensa). Já a montagem de Alexandre de Franceschi, embora execute saltos temporais incompreensíveis junto com o roteiro (falo mais sobre isso adiante), ao menos consegue criar alguns raccords interessantes a partir do terceiro ato, quando as memórias de Saroo passam a surgir com uma frequência maior. Em contrapartida, a trilha sonora elaborada por Hauschka e Dustin O’Halloran exagera ao ilustrar o tom dramático que domina a narrativa, abusando de violinos a fim de fazer a trama soar mais apreensiva.
Ainda assim, o maior problema de Lion começa a ser constatado do segundo ato em diante, quando o roteiro de Luke Davies apresenta certas situações que ganham resoluções insatisfatórias ou são desenvolvidas de modo terrivelmente superficial, resultando em avanços temporais indevidos e que sacrificam a aceitação do espectador: em determinado instante, o menino é adotado e a dinâmica entre ele e seus novos pais é retratada de maneira apressada demais; após poucos minutos de filme, o casal de australianos subitamente decide adotar outra criança sem que a relação deles com Saroo tenha sido representada devidamente; quando o protagonista em sua vida adulta, ele de repente vai do conforto com sua vida pacata até a vontade desesperada de rever sua família biológica de uma hora para a outra; mais pra frente, há um arco dramático terciário onde a personagem vivida por Rooney Mara se afasta temporariamente, mas isso tudo ocorreu de forma rápida a ponto de não gerar impacto algum.
Para completar, se Rooney Mara é desperdiçada ao viver nada além de um par romântico para Saroo (o que é um pecado inaceitável), Nicole Kidman surpreende ao adicionar força e sensibilidade na figura de Sue Brierley, a mãe adotiva do protagonista que projeta um carinho adoravelmente cativante. Já o pequeno Sunny Pawar usa seu olhar entristecido e seu semblante apavorado a fim de criar um Saroo muito mais interessante do que aquele interpretado por Dev Patel, que é hábil ao ilustrar a personalidade alegre que marca o personagem ao se divertir com seus amigos, mas que acaba se entregando àquelas caras e bocas esquemáticas que o ator costuma empregar sempre que o objetivo é simbolizar angustia, medo e insegurança.
Encerrando-se com uma conclusão bonitinha e que provavelmente despertará lágrimas em alguns espectadores, Lion finalmente se destaca ao abordar o assunto da adoção de maneira inesperadamente eficaz (às vezes, adotar serve como uma ação mais bondosa do que gerar mais uma pessoa para ser corrompida por um mundo que “Já tem pessoas demais“, como diz Sue Brierley) e revelar uma Índia diferente daquela que conhecemos popularmente, apresentando uma área mais sigilosa e menos rica daquele país. No fim das contas, é um drama competente, mas que começa a ser esquecido assim que a projeção termina.