No início da década de 60, o catarinense Rogério Sganzerla parte rumo à São Paulo para cursar direito. Já situado, passa a escrever no jornal O Estado de São Paulo, onde ganha espaço no Suplemento Literário e desenvolve seu (avançado) pensamento cinematográfico. Escreve entre 1964 e 1967, quando troca a máquina de escrever pela câmera e torna-se cineasta.
No intuito de retomar ao nosso presente a herança de um passado que insistem em apagar, o Depois do Cinema traz aqui a transcrição de três dos diversos textos que o cineasta escreveu para o Suplemento, na vontade de reerguer o pensamento de um pilar derrubado, não como mero documento histórico, como mera curiosidade, mas como uma quebra de paradigma, um eco berrante que impulsione a fuga do senso comum, da mediocridade dominante e do pensamento colonizado, e que nos permita chegar à crítica e, claro, ao cinema.
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Primeiro de três textos escritos por Rogério Sganzerla em 1965, nos quais o crítico e futuro cineasta teoriza sobre as características fundamentais de determinados cineastas, e como entendendo-as chegaríamos mais próximos da realização de um cinema verdadeiramente moderno. Os três são transcritos aqui a partir do livro Edifício Rogério, da Editora UFSC.
Lançado pela primeira vez em Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo: 12 jun. 1965. Suplemento Literário, p 5.
por Rogério Sganzerla
Nunca se deixou de dizer que o cinema está em crise, mesmo antes que tivesse importância industrial, isto é, desde o começo do século. Mas as insistências confundem e saturam.
Pessoalmente, considero que o cinema contemporâneo não vive uma crise, mas um impasse. Os realizadores de maneira global alternam-se e debatem-se entre duas tendências, geralmente confundidas e que podem criar confusão (expressas em afirmações tipo: “Antonioni e Resnais estão num beco sem saída”; “os bons cineastas estão comercializados”; “o cinema japonês deixou de ser bom”; “os cinema moderno é um mito, pois já existia no passado” etc. etc.). Refiro-me especificamente às contingências entre as quais os artistas tem que optar, diante das expressões mais simples e irredutíveis da existência humana, como objeto de suas explorações. Na sétima arte, tal dilema pode ser expresso por duas tendências: os cineastas da alma. E os cineastas do corpo – a serem tratados no próximo artigo.
Os cineastas da alma. Ou o cinema que pensa. Ou, ainda, que procura pensar. Justamente aquele proclamado como “adulto” e que “leva o cinema à verdadeira condição de sétima arte”. A lista é interminável, mas lembro-me principalmente de Antonioni, Fellini, Robert Bresson, Bergman, Visconti, Resnais[1].
Usam eles de argumentos sempre semelhantes: “preocupo-me com os conflitos interiores do homem, não me interessam os exteriores. Acredito que o seu drama está na consciência…” Bresson diz que o “cinema é movimento anterior”, enquanto Fellini considera-o a “arte em que o homem se reconhece da maneira mais imediata: um espelho no qual deveríamos ter a coragem de descobrir nossa alma”. Tais argumentos situam e aproximam entre si estes realizadores e, ao contrário do que possa parecer, não primam pela originalidade.
Prolongar e exteriorizar os conflitos internos através dos movimentos e repousos do corpo, como pretendem fazer, não seria uma alternativa discutível e contraditória, pelo menos no cinema, arte material e também conhecida como “arte das aparências”? Já se conhecem os resultados: a busca frenética de revelações interiores pode levar ao tratamento servil do corpo, não componente real, mas instrumento de uma “alma” romanesca, provavelmente falsa, em geral imposta pelo dialogador.
Também não se pode deixar de considerar racionalistas tais cineastas; as películas especulam, explicam e calculam os dramas e perturbações das pessoas. E, é claro, são admiradas e cultuadas pelos iniciantes no assunto, por toda uma escala de intelectuais e certos frequentadores de cinemateca que preferem receber mensagens…
A pedra de toque deste cinema é a “profundidade” dos temas e situações propostos. Sobre ela, vale a pena transcrever um trecho de Alain Robbe-Grillet, lembrando as íntimas relações do cinema moderno com o nouveau roman: “[…] sabe-se que toda a literatura romanesca repousa nos velhos mitos de ‘profundidade’, unicamente sobre eles. O papel do escritor tradicionalmente consistia em cavar a Natureza, aprofundar-se, atingir camadas cada vez mais íntimas e acabar por trazer à tona algum ‘brigue’ de um segredo perturbador. Descendo ao abismo das paixões humanas, ele enviava ao mundo tranquilo em aparência (aquele das superfícies) mensagens de vitória, descrevendo os mistérios que havia tocado com o dedo”.
Exatamente como os romancistas tradicionais, os cineastas da alma relegam de maneira sistemática as aparências dos seres e objetos porque acreditam exclusivamente na alma humana e seus enigmas; não tanto indagando-a e questionando-a, mas esquematizando-a em pensamentos originais. O que pode significar: fazer literatura em fitas ou ser simplesmente pretensioso (Os primos, Dolce vita, A fonte da virgem, Profanação, Os condenados de Altona).
A superfície é umas das condições implícitas e seu tratamento requer um certo distanciamento, uma certa humildade diante do real; de maneira alguma pode ser nulificada ou apresentada em função servil, causa de muitos fracassos.
Uma exclusiva preocupação pelo cinema da alma pode levar a resultados estéreis, a dramas abstratos. Estes dramas, cognominados “profundos”, são mais do que suspeitos: não é exatamente a câmera que penetra e revela o íntimo dos personagens, mas são alguns diálogos espúrios – com exceção dos cineastas japoneses – que pretendem “sondar e dissecar a alma humana”, remetendo a temas invariáveis: a incomunicabilidade, superioridade da mulher sobre o homem, a alienação, o coração feminino, a procura da Verdade, o terror e a miséria das almas sem Deus.
As fitas não apresentam um vivência existencial, mas literária; não há estados da alma sensíveis e reais, antes idealizações e os maneirismos contemporâneos (a incomunicabilidade, por exemplo, depois de meses de conversa fiada, conferências ou bate-papos, tornou-se mito e perda de tempo).
Enfim, estamos diante da mais autêntica e consagrada demagogia. Como acontece em todas as fitas de Federico Fellini, especialmente Dolce vita e Oito e meio; Os primos e Quem matou Leda? de Chabrol; Morangos silvestres e alguns aspectos démodés da filmografia de Bergman; Bresson e certa literatura católica; Wadja e uma mitologia guerreira; Mizoguchi e o universo imaterial, ainda que ágil e elegante de Contos da lua vaga; Duas almas em suplício (Moderato cantabile), do inglês Peter Brook; a maior parte das fitas italianas e ainda Truffaut (Os incompreendidos). Também é necessário citar Leopoldo Torre Nilson, diretor argentino, em cujas realizações não há propriamente personagens reais, mas encarnações de ideias e temas absolutos – e não se sabe se é sério ou não quando diz que o tema de Homenaje a la hora de la siesta é a procura da Verdade, naturalmente com V maiúsculo, por parte de todos os personagens.
Este cinema, que fala uma linguagem maniqueísta, própria de manuais e introduções à filosofia tradicional (“o personagem simboliza o homem diante do Bem e do Mal” ou entre “a Anarquia e o Terror”, termos tão “batidos” pela crítica acadêmica), é antes um prolongamento do expressionismo do que uma criação livre e original. Não há ligações essenciais com o cinema moderno, que se dirige a um caminho oposto (a exploração do concreto), abraçando temas abstratos, valores absolutos (o Bem, o Mal, Deus, Tempo, Morte, Amor, Vida, tudo com inicial maiúscula) e literários.
A crítica academia chama alguns cineastas do corpo (Godard, Fuller) de mistificadores, talvez sem perceber que os verdadeiros mistificadores podem chamar-se Mauro Bolognini, Robert Bresson, Valerio Zurlini, Peter Brook.
Eles acreditam ser “os filósofos da tela” – o que justifica tudo, inclusive os diálogos de Marguerite Duras em Moderato cantabile, as frases bonitas e o jogo de locuções. É muito fácil gostar de fitas, adotando sempre a palavrinha mágica: o filme é “profundo”. Ou então “humano”.
Não são muitas as películas que, “tentando explorar os caminhos interiores da alma humana”, deixaram de ser literatura filmada; e esta literatura nem sempre é das melhores.
O fato de um filme ter ligações com movimentos literários ou apresentar elementos afins, não constitui, a meu ver, defeito ou deformidade. Basta dizer que a maioria dos novos recursos narrativos provém, direta ou indiretamente, de conquistas formais do romance. Mas as influências devem entrosar-se e integrar uma obra de arte, longe de alterá-la ou bitolá-la.
Em diversas realizações dos cineastas da alma tal influência determinou uma transformação fundamental na composição do filme: as estruturas mudam e tornam-se híbridas aproximações de estruturas literárias. O que também acontece na simbologia literária (de um Cocteau ou Fellini, por exemplo) e com o ritmo (lento, na maioria das vezes sem um motivo aparente, como em muitas fitas italianas).
O cinema concentra-se em sutilezas descritivas – próprias do romance clássico – e adquire uma função proeminentemente analítica. Torna-se, então, mais um instrumento exclusivo de dissecação psicológica do que uma criação espontânea, sem fina ou predestinações específicas.
É claro que as apreensivas atenções pelo universo anterior dos personagens podem alcançar resultados transcendentais, como em muitas fitas antigas, geralmente desprezadas e esquecidas na época de sua realização, que ainda hoje surpreendem os críticos e cinéfilos da nova geração. Muitos diretores, realizando melodramas, westerns classe B ou filmes de segunda classe, instintivamente ofereciam construções intimistas paralelamente à narração (Ray Enright, Rouben Mamoulian, Douglas Sirk, Charles Victor, Clarence Brown e J. Stahl, entre os mais famosos). Há que citar Bergman, William Wyler, Sternberg etc., os “pré-cineastas da alma”.
No cinema contemporâneo há duas grandes exceções em relação a um generalizado conformismo literário, próprio dos cineastas da alma e seu neodecadentismo. São Michelangelo Antonioni e Alain Resnais. Aquele, mesmo lidando com os melodramas peninsulares, consegue realizar um cinema superior; o autor de Marienbad, apesar de condicionado a textos perigosos em todos os seus filmes e até nos curtas-metragens, não se limita a condições servis ou mistificadoras. Enfim, Aventura é uma obra definitiva e Ano passado em Marienbad, um filme absoluto.
Neles, as indagações psicológicas e modismos em geral são pontos de partida para o exercício cinematográfico: um movimento de câmera, um leitmotiv musical, pode contrariar e contradizer uma “verdade” pronunciada por um personagem inteligente. A alma e os sentimentos não são o princípio e o fim de tudo, inclusive da sétima arte: são um dos aspectos da existência, do mundo, do homem, do cinema.
[1]: Não se pode deixar de incluir Claude Chabrol, Michel Cacoyannis, Hitchcock em algumas fitas; Mauro Bolognini e muitos cineastas italianos: Jerzy Kawalerowicz de Madre Joana dos Anjos; Jurgen Goslar, autor do filme alemão Justiça em pecado; Jean Cocteau, Naruse, Ozu, Wadja, Gosho, Kenji Mizoguchi, Kakei, Suzuki, o brasileiro Walter Hugo Khouri e sua Noite vazia; Ohba de O segredo da bailarina; Marco Vicario, recentemente estreado em São Paulo com o admirável As horas nuas.