O mais surpreendente de Homem com H é que, mesmo caindo em várias armadilhas típicas das cinebiografias (e que vivo apontando a ponto de fazer-me parecer redundante), o filme funciona relativamente bem. Em boa parte porque o diretor/roteirista Esmir Filho entende e absorve o espírito aventureiro de Ney Matogrosso de tal forma que acaba esbanjando um carinho, pelo biografado, que soa genuíno em vez de cair numa bajulação tonta. É uma boa demonstração de que, para uma biopic exibir afeto pela personalidade que retrata, não é preciso idolatrá-la pateticamente nem suavizar suas imperfeições; basta se interessar em compreendê-la e fazer jus a quem era.
O Ney Matogrosso visto aqui é um espírito de liberdade; uma força da natureza que não se conforma em esconder-se sob a casca de masculinidade tóxica imposta pelo pai violento e, anos depois, pela censura da ditadura militar. Nesse sentido, um dos maiores méritos de Homem com H é adotar a figura de Ney como ponto de partida para se analisar não necessariamente a homossexualidade, mas algo mais sutil e insidioso: a cobrança (leia-se: violência puramente ideológica) imposta pela sociedade sobre o que é ser “homem”; sobre o que se espera de alguém em tal condição.
Não se pode ter uma voz suave, não se pode chorar, não se pode usar rímel e maquiagem, não se pode gostar de roupas coloridas, não se pode ter um gosto ou sensibilidade artística mais aflorada. É preciso falar grosso, segurar o choro e manter-se impassivo, cortar o cabelo, entrar para as Forças Armadas, considerar “depravação” qualquer ato que desafie a mais irrestrita heteronormatividade. É por isso que Ney é um gigante: ele olha para isso e diz “Eu me recuso”. “Eu sou livre”. “A ditadura não gosta de me ver remexendo o quadril? Dane-se.” – e, nesse aspecto, o longa acaba convertendo a ditadura praticamente num símbolo dessa imposição sobre os homens, fazendo questão de lembrar como a censura imposta pelo regime não era “apenas” sobre o que pensávamos, mas também sobre o que éramos.
Até aí, contudo, é mérito muito mais de Ney Matogrosso do que do filme em si. A sorte é que Homem com H espelha bem essa natureza audaciosa do protagonista e faz jus aos motivos que o tornaram, na vida real, tão formidável.
O problema, por outro lado, é que desde os primeiros 15 minutos o longa já começa a recair em uma penca de armadilhas das biopics: em especial, a passagem do tempo é muito mal-estabelecida, avançando entre os diferentes “capítulos” da trajetória de Ney de forma tão abrupta que deixa umas crateras inexplicáveis entre um e outro. Num momento, ele sai de casa; no outro, está no exército; em seguida, está num coral e chama a atenção do produtor; pouco depois, tem um caso com esse produtor, mas logo termina com ele; então, começa a chamar atenção e vai parar nos Secos e Molhados; aí sai do grupo, vai para uma amizade/relacionamento com Cazuza e… é tudo muito rápido.
Não só isso tira o peso de cada passagem, como cria uma desorientação em relação ao momento em que o personagem se encontra, como foi parar ali, qual o próximo passo que ambiciona. Aliás, uma coisa que me irrita é como o longa usa convenientemente do humor para se esquivar da tarefa de explicar/aprofundar algum conflito: quando os integrantes dos Secos e Molhados chegam para Ney e tentam convencê-lo a largar aquelas maquiagens icônicas, corta a cena e… eles estão todos se apresentando maquiados. “Ahahah, Ney venceu a discussão, calou a boca deles todos e o humor disso foi reforçado pelo corte seco!”. Sim, mas… percebem como, através desse corte engraçadinho, o filme simplesmente abriu mão de se aprofundar minimamente naquela problemática?
Diga-se de passagem, é meio sintomática essa dependência absurda que Homem com H tem de legendas indicando aonde e em que ano a história se encontra em cada cena: em vez de desenvolver uma narrativa coesa que leve naturalmente ao lugar X ou ano Y, o longa prefere apelar a uma exposição digna de um resumão da Wikipédia. Para piorar, Esmir Filho fica meio indeciso sobre qual o melhor momento para encerrar a trama – e essa incerteza cobra um preço, já que o filme se atrapalha, em particular, na conclusão do conflito entre Ney e seu pai, que acaba ganhando uma resolução tão apressada que soa condescendente com um cara que só reprimiu, violentou e traumatizou o filho (se na vida real ele era mais do que um canalha, no longa ele é retratado exclusivamente como… um canalha).
Dito isso, Homem com H é muito elevado, como já era de se esperar, pelo excelente trabalho de Jesuíta Barbosa, que não só se aproveita da semelhança física (assombrosa!) que divide com o verdadeiro Ney Matogrosso, como também demonstra uma fisicalidade que faz jus à do biografado e que ajuda a (com o perdão do trocadilho) movimentar e requebrar as coisas. Se o artista do filme convence como uma figura livre e poderosa a ponto de desafiar o status quo, isso não ocorreria se a performance de Barbosa não fosse uma potência por si só. Já Rômulo Braga, que há pouco encarnou um pai ainda mais abusivo no devastador Manas, empresta ao pai do protagonista um semblante rígido que o converte instantaneamente numa figura ameaçadora, soando hostil mesmo que o roteiro insista em tentar conceder ao personagem uma “redenção” que não lhe cabe.
E, assim, essa biografia chega a um desfecho que – sem spoilers – não poderia dedicar admiração e carinho maiores por Ney Matogrosso, culminando numa conclusão que, apesar de todos os tropeços que a antecederam por duas horas, soa merecida em um projeto irregular, mas cheio de afeto.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: