É irônico que Demônio de Neon mostre-se tão disposto a criticar com unhas e dentes a ditadura da beleza: dirigido por Nicolas Winding Refn (do magistral Bronson e do soberbo Drive) de maneira tremendamente hipócrita e superficial, o longa potencializa o que transformou Apenas Deus Perdoa num desapontamento e cria uma experiência visualmente linda, porém embaraçosamente artificial e pavorosa em todos os demais aspectos. Uma obra bonitinha, mas ordinária. Sendo assim, então o fato deste ser um dos piores lançamentos do ano talvez até tenha algum nexo: será que Refn está tentando dar um exemplo prático do quão nocivo é o mundo da beleza sem substância?
Ok, isso não faz sentido algum.
O mais inexplicável, no entanto, é que, ainda que tenha sido roteirizado por três nomes (Mary Laws, Polly Stenham e o próprio Refn), Demônio de Neon mal consegue sustentar uma narrativa que justifique mais que meia hora de projeção. Basta dizer que Jesse, uma garota órfã de 16 anos, muda-se para outra cidade na tentativa de adquirir um emprego e torna-se uma modelo de altíssimo nível, enfurecendo suas concorrentes e formando uma amizade com a maquiadora Ruby. À medida que a narrativa progride, porém, a adolescente converte-se cada vez mais num monstro dominado pelo mais puro ego, o que destrói as relações que mantém com todos à sua volta.
Pedestre em suas tentativas de expor a imundice da indústria da moda, o filme estabelece suas reflexões adotando uma obviedade que chega a ser ofensivamente tola: os diálogos entre as modelos parecem estar à beira de berrar “hey, vejam como elas são estúpidas!” (“Você não vai comer isso, vai?“, pergunta uma antes de ser correspondida com “Ah, mas eles se esforçam tanto para decorá-lo…“) – aliás, sempre que uma linha de diálogo começa com “Querida…“, é porque algo absurdamente infantil vem logo em seguida, como “… plástica é apenas se cuidar bem; imagine passar um ano sem escovar os dentes” ou “… as pessoas acreditam no que dizemos” (este último ocorre quando uma empresária inventa uma mentira pública). E se Jesse é transformada numa criatura insuportavelmente ególatra, ela logo diz: “Sabe como minha mãe costumava me chamar quando eu era criança? Perigosa“. Oh. De todo modo, poucas coisas se igualam ao ridículo fotógrafo cuja vilania é transmitida em suas expressões frias, seu tom de voz monocórdio e suas falas hilárias (“Eu quero te usar neste trabalho“), compondo uma caricatura que poderia ser complementada por um bigodinho estereotipado.
Sim, é interessante investir em espelhos – um item que, no mundo artístico, simboliza com frequência o narcisismo – que marcam presença em quase todos os momentos da projeção (refletindo até mesmo o conceito de plano e contra-plano numa conversa), mas até nisso o diretor perde a mão ao trazer não uma, mas três cenas que duram segundos consideráveis onde pessoas diferentes interagem com um espelho cuja proporção ocupa cerca de 90% da tela (não tinha forma menos escancarada de retratar os sentimentos vaidosos dos personagens?). Diga-se de passagem, alegorias bobas são o que menos falta em Demônio de Neon: a mais chocante de todas é revelada no desfecho da película e envolve… digamos, a “absorção” de energias – em tese – positivas (me perdoem, mas não consigo ser mais vago que isso). Por outro lado, também há momentos que, sinceramente, não faço a menor ideia do porquê de existirem: o que aquela pantera significa? Qual o propósito daquele pesadelo envolvendo uma faca? E aquela cena de sexo que ocorre no terceiro ato e que é montada em paralelo com uma coletânea de imagens da protagonista se acariciando?
O pior de tudo é que, mesmo se pararmos para buscar um contexto para estas sequências, os resultados são sempre idiotas demais para serem levados a sério. A pantera sintetiza a destruição? Aquele sonho amedrontador representa o perigo latente entorno da protagonista? A relação sexual peculiar serve para indicar as necessidades particulares de Ruby? Então podemos presumir que, de fato, existem simbolismos nestes trechos absurdos, mas todos soam imaturos e, na maioria das vezes, são construídos com um sadismo que parece muito mais interessado em chocar o público do que em enriquecer a obra sob o ponto de vista temático. (E peço desculpas, mas preciso retornar mais uma vez à pantera: como diabos ela foi parar lá? Como ela foi removida do local? Aquilo não foi uma ilusão!). Para piorar, todos esses instantes são prolongados por um tempo excessivo que parece ter sido estendido apenas para disfarçar o que está mais do que evidente: a trama e o desenvolvimento do roteiro claramente não comportam cerca de duas horas de projeção.
Por falar em roteiro, não há como admitir uma construção de personagem tão precária quanto a de Jesse: introduzindo-a como uma jovem pura e insegura, o longa abruptamente a torna um ser desprezível de tão egocêntrico e pedante – desta forma, quando a segunda metade da projeção nos reapresenta à protagonista, não conseguimos aceitar as mudanças que ela experimentou porque estas foram desenvolvidas de modo insatisfatório. E antes que me perguntem: sim, compreendo que aquela sequência que traz Jesse sendo fotografada em meio a três espelhos triangulares retrata a alteração definitiva em seu caráter, mas tentar impor apenas este momento como justificativa para o fenômeno é algo imperdoável (especialmente quando consideramos que, na cena que precede esta passagem, a personagem ainda era uma menina ingênua e, no instante que vem logo após a transição, ela já se reencontra como uma pessoa diferente e arrogante).
Por sua vez, Elle Fanning possui uma característica que faz dela a escolha perfeita para interpretar Jesse: mantendo um semblante neutro, lábios encolhidos, tom de voz angelical e olhos grandes que exalam fascínio, a atriz conta com uma habilidade natural para conferir inocência e pureza ao papel; dois aspectos que são diametralmente opostos à ameaça desarmônica, mentirosa e imoral da indústria da beleza, o que não deixa de ser intrigante. Infelizmente, Fanning surge terrivelmente inexpressiva e insossa da primeira à última aparição – o que (é importante dizer) não é culpa da atriz, pois o próprio Nicolas Winding Refn parece encará-la mais como um item de decoração a ser fotografado do que como artista cênica. E se Jena Malone também faz o melhor que pode ao viver Ruby (ou seja: manter a mesma expressão do início ao fim), Keanu Reeves aparece em três cenas irrelevantes e perde a oportunidade de criar aquele que poderia ser o personagem mais diferente de sua carreira (um desperdício lamentável que, mais uma vez, deve ser creditado a Refn).
Ainda assim, Demônio de Neon é particularmente agradável no que diz respeito ao seu estilo estético: empregando uma paleta de cores que enchem os olhos através de tonalidades vibrantes e chamativas, Refn une seus esforços com os da diretora de fotografia Natasha Braier para dar origem a um interessante jogo visual onde o vermelho sempre representa a truculência contrária à leveza ilustrada a partir do azul, destacando-se também o roxo que serve para pontuar a ousadia e a imprevisibilidade que permeiam o universo da obra. Simbolismos (óbvios ou não) à parte, o fato é que vários planos vistos durante os 117 minutos da projeção mereciam integrar uma exposição fotográfica simplesmente por serem… bonitos (não é todo dia que vejo luzes e cores tão lindas), ao passo que os figurinos e maquiagens utilizadas por Jesse refletem com eficiência a extravagância do mundo das modelos (algo que se constata logo na abertura, quando purpurinas aparecem voando ao longo da tela). Em contrapartida, a trilha sonora de Cliff Martinez investe em composições eletrônicas irritantes que doem nos ouvidos e parecem ter sido geradas por alienígenas tentando entrar em contato com a Terra.
Não é por acaso que, desde suas primeiras exibições, muitos vêm comparando este novo projeto de Refn ao clássico Suspiria, representante do giallo que o italiano Dario Argento realizou em 1977: ambas as produções são protagonizadas por jovens relativamente inocentes que são submetidas a um mundo opressivo. Da mesma forma, a identidade visual do novo longa remete diretamente ao trabalho de Argento, estabelecendo um contraste entre as fortes cores (lembram daquele prédio vermelho que, sob a chuva, parecia estar sangrando?). Um sucessor à altura daquele clássico poderia ser concebido caso o cineasta ainda contasse com o mesmo brilhantismo demonstrado em Bronson (seu melhor filme), mas como este não é o caso, Demônio de Neon se revela uma obra que se acha desafiadora quando, na realidade, é apenas superficial e burra.
Como filme, o novo trabalho de Nicolas Winding Refn é um bom ensaio fotográfico. E só.