Pieces of a Woman
Pieces of a Woman (1)

Título Original

Pieces of a Woman

Lançamento

7 de janeiro de 2021

Direção

Kornél Mundruczó

Roteiro

Kata Wéber

Elenco

Vanessa Kirby, Shia LaBeouf, Molly Parker, Ellen Burstyn, Sarah Snook, Iliza Shlesinger, Benny Safdie, Jimmie Fails e Domenic Di Rosa

Duração

128 minutos

Gênero

Nacionalidade

EUA

Produção

Kevin Turen, Ashley Levinson e Aaron Ryder

Distribuidor

Netflix

Sinopse

O triste resultado de um parto em casa deixa uma mulher emocionalmente destruída. Isolada do parceiro e da família, ela vive um profundo luto.

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Pieces of a Woman | Crítica

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Quis o destino que eu assistisse a Pieces of a Woman poucos dias depois de ver Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre – o que, de certa maneira, acabou criando um contraste curioso: se o filme de Eliza Hittman se destacava justamente por retratar uma série de conflitos essencialmente femininos sob a ótica de uma cineasta que, por ser mulher, sabia o que era sofrê-los na pele (e, como apontei em minha crítica, aquele longa obviamente não seria o que é caso dirigido por um homem), Pieces of a Woman divide a natureza feminina da narrativa que conta, mas, por outro lado, teve seu roteiro (escrito por uma mulher, Kata Wéber) filmado por um homem, o húngaro Kornél Mundruczó (marido da roteirista, inclusive). O resultado é uma obra que, embora eficiente e potente, carece justo daquilo que mais a favoreceria: o olhar de alguém que entenda na pele como são as situações que retrata.

Adaptado da peça teatral homônima que Wéber e Mundruczó criaram em 2018 (e que, por sua vez, era baseada numa história real que os dois vivenciaram), Pieces of a Woman tem início com o casal Martha e Sean aguardando ansiosamente o nascimento do filho, agora que a gestação da esposa está em suas semanas finais. No entanto, quando chega a noite em que a bolsa de Martha estoura e os dois chamam uma parteira para resolver a situação em casa, sem levá-la a um hospital, o processo revela-se mais tenso que o esperado e acaba resultando em uma tragédia que prefiro manter em sigilo mesmo supondo que todos imaginem do que se trata. A partir daí, o filme passa a acompanhar a jornada de Martha ao seguir com a vida e ao lidar com o trauma que ficou – uma jornada que se torna ainda mais difícil em função das constantes cobranças e intromissões que continuam a ser feitas pelo marido e pela mãe.

Hábil ao ilustrar cada etapa do parto natural, feito em casa, e desmistificá-lo no processo (afinal, é fato que ele existe e a incompreensão da sociedade acerca dele é um problema por si só), Pieces of a Woman mostra-se cuidadoso ao retratar, a partir do segundo ato, como toda a estrutura patriarcal do mundo no qual vivemos tende a colocar a mulher vítima de um trauma (seja este qual for) sob os holofotes do julgamento alheio: Sean abandona qualquer resquício de carinho e empatia que pudesse oferecer em prol de uma vitimização, como se o grande injustiçado da tragédia fosse ele; Elizabeth, mãe de Martha, vive insistindo para que a filha leve o julgamento adiante (como se encontrar um(a) culpado(a) pelo ocorrido fosse diminuir sua dor como avó) em vez de respeitar a vontade desta de simplesmente tocar sua vida adiante; e os conhecidos da protagonista não hesitam em trazer o assunto de volta à mesa, obrigando Martha a revivê-lo, e nem tomam qualquer cuidado nas palavras que escolhem para tratá-lo. Neste sentido, uma das cenas mais memoráveis do filme – ao menos, para mim – é aquela que traz uma reunião familiar e na qual um comentário do irmão de Martha (vivido por uma ponta de Benny Safdie) sobre um ex-colega de banda que agora tem filhos acaba despertando uma reação na protagonista, criando um clima de tensão que sua mãe e sua irmã atribuem, claro, a ela.

Mas a força de Pieces of a Woman, contudo, está mesmo em sua impecável escalação de elenco – e, se Kornél Mundruczó toma algumas decisões de mise-en-scéne questionáveis (e que discutirei adiante), o mesmo não pode ser dito a respeito de como dirige os atores: oferecendo uma das melhores performances femininas do ano, Vanessa Kirby surge sob a pele de uma personagem que nada tem a ver com os tipos eficientes, mas diferentes que viveu em Missão: Impossível – Fallout e Hobbs & Shaw (nos quais já demonstrava carisma). Aqui, Kirby acerta ao adotar o realismo como base de sua composição, fazendo questão de retratar as dores, as contrações, as posições e mesmo os arrotos de Martha durante o trabalho de parto – ou seja: jamais tentando fazê-lo parecer mais bonitinho e menos desconfortável do que realmente é. Além disso, Kirby toma uma decisão inteligente ao contrapor a intensidade que exibe durante o parto e o desânimo que projeta após o trauma, investindo em uma composição sutil e verossímil ao ilustrar como aquela situação provocou um distanciamento entre Martha e o mundo real.

Mundo este que, verdade seja dita, justifica o distanciamento de Martha, já que as pessoas ao seu redor em nada contribuem para sua recuperação e limitam-se a pensar nelas mesmas como protagonistas da situação. Assim, Ellen Burstyn ocupa aquela que, para mim, é uma das posições mais tristes de todo o filme, já que, embora mãe de Martha, sequer tenta respeitar o espaço da filha e logo chega ao ponto de culpar ela pela tragédia inteira (e Ellen Burstyn, com sua expressão sofrida e seu tom de voz sempre trêmulo, faz um trabalho fabuloso ao combinar tanto a fragilidade da personagem quanto sua reprovável insensibilidade), ao passo que Shia LaBeouf volta a demonstrar sua capacidade de criar personagens brutos e emocionalmente instáveis (o que muito provavelmente tem a ver com a persona do próprio ator na vida real, como indica Honey Boy), abandonando o resquício de preocupação que mantinha na meia hora inicial de projeção e entregando-se à apatia e ao egoísmo depois disso (e mostrando que a tal “preocupação” do início era direcionada a ele mesmo, ao medo de que ele pudesse perder seu filho). Para completar, é preciso destacar o desempenho de Molly Parker, que sintetiza em poucos minutos o desespero, o medo do fracasso e a culpa que tomam conta da parteira Eva durante todo o processo.

O que nos traz à cena do parto e, portanto, aos problemas que tive com certos elementos da direção de Kornél Mundruczó: embora a ideia de retratar a situação inteira através de um único plano-sequência seja eficiente, transmitindo a sensação de que se trata de uma tensão contínua e prolongada (e representando, é claro, um desafio técnico para todos os envolvidos na cena, da equipe por trás da câmera aos atores presentes e à ambulância que chega no final), o fato de Mundruczó e o diretor de fotografia Benjamin Loeb encenarem o parto de forma excessivamente calculada e posada, com cada movimento de câmera soando milimetricamente pensado para soar como feito técnico, acaba resultando num exibicionismo que trai o realismo (e mesmo o naturalismo) presente(s) no roteiro de Kata Wéber e nas atuações em geral – um exibicionismo que, infelizmente, se mantém até o final da projeção. A sensação que fica, portanto, é a de que Mundruczó está mais interessado em ostentar sua capacidade de criar um plano plasticamente bonito (do tipo “Olha como eu sei filmar”) do que em usar a linguagem para dizer algo.

Não acho que chegue a ser um caso de exploração da violência, já que, como falei, o filme é bem-sucedido em desmistificar uma série de detalhes e complexidades presentes no universo das mulheres (e de Martha); o problema, em vez disso, está na forma exibicionista com que mostra boa parte disso e que não combina com a proposta realista do projeto como um todo – e a trilha excessiva de Howard Shore, em especial, é outro aspecto que ajuda o longa a soar mais artificial e calculadinho do que deveria. Além disso, não vou mentir que, embora acreditando nas boas intenções do cineasta, o momento em que a câmera percorre o braço de Martha na banheira até enfocar sua mão por alguns segundos me fez lembrar de Jacques Rivette, que, ao discutir a cena polêmica de Kapò: Uma História do Holocausto na qual a personagem de Emanuelle Riva se suicida jogando-se num arame farpado eletrificado (com a câmera se aproximando dela num travelling visualmente lindo), escreveu: “O homem que decide fazer um dolly-in para reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando o cuidado de inscrever exatamente a mão levantada num ângulo de seu enquadramento final, tem direito apenas ao mais profundo desprezo“.

Pois “desprezo” certamente não é algo que acredito que Mundruczó mereça, já que nem o exibicionismo de sua abordagem visual é suficiente para comprometer a força das situações que retrata e do elenco que dirige. E, quando não está preocupado em parecer bonito demais, Pieces of a Woman consegue ser real, ambicioso e impactante como se propõe a ser.

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