Com apenas seis longas, o recifense Lírio Ferreira já estabeleceu uma filmografia tão eclética e, ao mesmo tempo, tão coesa em suas marcas autorais que é difícil não admirá-lo. Responsável por ajudar a retomar o Cinema pernambucano na década de 1990 através do ótimo Baile Perfumado, no qual voltava à época do cangaço a fim de contar a história real do libanês Benjamin Abrahão Botto (único fotógrafo/cineasta da História a conseguir registrar Lampião), Ferreira se mostrou um realizador capaz tanto de mergulhar na poesia lúdica e mística do lindo Sangue Azul quanto de refletir os problemas do mundo real em Árido Movie – um bom filme que, junto à trama íntima de vingança que criava, aproveitava para escancarar os efeitos colaterais da seca no sertão e que agora, 15 anos depois, ganha uma espécie de “continuação espiritual” neste Acqua Movie. (Ah, sim: entre Árido Movie e Sangue Azul, Ferreira também comandou os documentários O Homem Que Engarrafava Nuvens e Cartola: Música para os Olhos, comprovando mais uma vez sua maleabilidade.)
Voltando a demonstrar uma fixação quase autoral por narrativas que comecem num funeral (como atestam Baile Perfumado e Árido Movie), este Acqua Movie acompanha o pré-adolescente Cícero, que, habituado a morar com o pai em São Paulo, raramente tem a oportunidade de ver a mãe Duda, já que esta geralmente encontra-se distante rodando documentários sobre os povos indígenas e a luta destes por direitos. No entanto, depois que o pai de Cícero morre (uma morte que, aliás, o filme nem se preocupa em mostrar, o que ajuda a salientar o caráter repentino de uma tragédia que sequer teve tempo de ser processada), o garoto implora para a mãe levá-lo ao sertão a fim de jogar as cinzas no Rio São Francisco, num ponto próximo à cidade de onde veio o pai do menino. Assim, ao contrário de Árido Movie, que se dividia entre tramas paralelas e um monte de personagens distintos, Acqua Movie se mantém contido na relação entre Duda e Cícero, empregando a estrutura de road movie para conduzir o pequeno protagonista da capital urbana e industrializada de São Paulo às ruas secas e áridas de um sertão dividido entre os nativos e o coronelismo que busca expulsar estes de suas terras.
Como podem perceber, Acqua Movie é um filme que não só discute os problemas que vêm se prolongando por décadas na História do Brasil (a seca, o coronelismo, a exploração de propriedades indígenas), como também reflete o cenário do país no qual vivemos hoje, governado por um presidente e por políticas de Estado que atuam ativamente a favor da expropriação dos nativos e dos interesses de quem busca tomar sua propriedade – e o fato de boa parte da população não entender a causa dos indígenas, enxergando estes como figuras distantes, obviamente facilita o trabalho de quem quer prejudicá-los. E é justamente isso que torna tão interessante a decisão de Lírio Ferreira de escolher, como protagonista de seu filme, uma criança do Sudeste que, habituada a enxergar os índios como folclores, é submetida a um processo gradual de desconstrução. Desta forma, é como se Acqua Movie pegasse na mão do espectador que nem de longe compreende a gravidade do massacre indígena e o conduzisse por uma jornada na qual ele e Cícero gradualmente quebrassem velhos preconceitos e conhecessem o mundo sob o ponto de vista do Outro.
Neste sentido, Ferreira e o diretor de fotografia Gustavo Hadba (Faroeste Caboclo) executam bem a importantíssima tarefa de estabelecer, afinal, o contraste entre os dois “mundos” ocupados por Cícero: o primeiro reduzido às salas e aos quartos apertados e frios de São Paulo e o segundo, marcado pelas paisagens vastas, áridas e quentes do sertão – e entender a diferença entre os dois é fundamental para entendermos o impacto que a transição de um para outro tem no protagonista (se no início Cícero surfava ondas virtuais no videogame que jogava em seu quarto, mais tarde ele percebe ser possível surfar, ora, ondas de verdade ao sair de casa; um detalhe óbvio, mas curioso). Da mesma forma, Ferreira é hábil ao retratar o distanciamento e a reaproximação entre Cícero e Duda, começando com os dois bastante afastados e pontuando todo o processo que vem a seguir através de pequenos gestos de afeto que surgem da parte do filho e/ou da mãe – e a decupagem, de modo geral, reflete bem a intimidade entre os dois ao manter a câmera frequentemente próxima aos seus rostos durante os diálogos.
Na verdade, eu diria que um dos poucos tropeços de Ferreira reside na inconsistência do tom de uma ou outra cena, sendo peculiar, por exemplo, que a empregada vivida por Marcélia Cartaxo seja mostrada com um enfoque de horror (como se sua presença devesse indicar que algo está errado ali) que acaba não se justificando – ao menos, não com aquela personagem. Outra fragilidade recorrente de Ferreira, aliás, encontra-se na criação de diálogos que soam melhores no papel do que na prática, tornando-se artificiais graças a uma direção de atores nem sempre eficiente – e isto acontece com várias falas de Cícero, em particular, que soam mecânicas (Duda também tem suas frases de efeito pré-prontas, mas estas surgem em menor proporção). Mas nada, porém, que comprometa o filme ou que torne as atuações de Antonio Haddad e Alessandra Negrini menos eficazes, encarnando de forma convincente tanto o amadurecimento de Cícero quanto as preocupações sociais de Duda.
E, com isso, Acqua Movie chega a um desfecho que funciona perfeitamente não só por oferecer uma resolução para a história particular daqueles personagens, mas também por concluir as questões temáticas levantadas pelo filme, amarrando ambas com naturalidade. E, se todo mundo passasse por um arco como o de Cícero e entendesse a grandeza dos indígenas em vez de insistir na lógica reversa de que os exploradores são os reais injustiçados, certamente o Brasil estaria um pouco melhor.